Quem lê apenas o Código dos Contratos Públicos forma a convicção de que o ajuste direto é, em Portugal, um procedimento mais ou menos marginal, que só pode ser usado em casos especiais ou para contratos de valor reduzido, e, neste caso, dentro de limites que, por exemplo, não permitem adjudicações sucessivas à mesma entidade. Assim, na lei básica da contratação pública, imperam as regras de respeito pela concorrência e da igualdade de oportunidades dos agentes económicos e, consequentemente, o ajuste direto (ou a consulta prévia, que é um ajuste direto em que são convidadas várias entidades a apresentar proposta) ocupa um lugar modesto e marginal. Trata-se de um resultado compreensível, que corresponde à única solução aceitável no contexto de um Estado de Direito, que se pauta pelo princípio da igualdade e pela regra de respeito dos agentes económicos e de proibição das discriminações e dos privilégios.

Sucede porém que, ao lado e para além do Código dos Contratos Públicos, há outros diplomas legais que, sem freio, vêm promovendo a regra do ajuste direto nas compras públicas, alargando a possibilidade de adoção desse procedimento para a adjudicação de contratos de valores muito acima dos que o Código permite, em regra, até aos limiares de aplicação das diretivas da União Europeia. Ou seja, a ideia que se colhe agora é de que este legislador avulso tem uma preferência pelo ajuste direto, que fomenta sempre que entende fazê-lo e até aos limites em que tal lhe é consentido pelo direito da União Europeia. E assim se cria e promove um direito da contratação pública baseado no ajuste direto e, ao mesmo tempo, um Estado que privilegia a contratação por convite e que, sem critério, rejeita submeter-se ao concurso público.

Este lamentável desenvolvimento, que se vem acentuando de forma preocupante nos últimos anos, é visível nas chamadas medidas especiais da contratação pública, que promovem a regra da possibilidade de ajustes diretos para a contratação em vários setores (habitação, tecnologias de informação e conhecimento, setor da saúde e apoio social, execução de projetos financiados por fundos europeus, incluindo os fundos PRR): regra cuja aplicação, sem surpresa, acaba de ser estendida até 2026. O mesmo fenómeno se evidencia no recente decreto-lei de aprovação das normas de execução do OE para 2022, que contém uma longa e generosa lista de permissões para a realização de despesa pública até aos limiares de aplicação das diretivas no âmbito de procedimentos de consulta prévia e de ajuste direto (por exemplo: despesas com aquisição de bens e serviços no âmbito do projeto de ajustamento do mapa judiciário; despesas com empreitadas e aquisições de bens e serviços a realizar pela Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos e pelas Autoridades Portuárias; despesas com a montagem de transações relativas a participações sociais em empresas de que o Estado é, direta ou indiretamente, acionista; despesas com a aquisição de bens e serviços no âmbito da organização e execução da edição de 2022 do evento Web Summit; despesas com a aquisição de serviços de vigilância eletrónica para o incremento dos já existentes em razão do aumento do número de vigiados e da nova tipologia de serviço de vigilância eletrónica). Já com outras implicações, ao panorama descrito junta-se a inércia legislativa que tem o efeito de manter em vigor o regime excecional de contratação pública, aprovado em março de 2020 no quadro da emergência relacionada com a Pandemia.

Este quadro legal de efetivo favorecimento do ajuste direto é fabricado e, tudo o indica, vai continuar a crescer no mesmo sistema jurídico que conhece uma lei que aprovou o regime geral de prevenção da corrupção do qual consta um preceito muito politicamente correto sobre a “promoção da concorrência na contratação pública”, e que diz assim: “as entidades públicas … adotam as medidas que, de acordo com as circunstâncias, se revelem adequadas e viáveis no sentido de favorecer a concorrência na contratação pública e de eliminar constrangimentos administrativos à mesma, desincentivando o recurso ao ajuste direto”. Pois bem, esta é uma lei de bom espírito, de afirmação dos princípios certos e de solenes proclamações, que, de forma expressa, desincentiva o ajuste direto como estratégia de prevenção da corrupção: vemos agora que é uma lei para inglês ver, e é o próprio legislador do dia-a-dia a mostrar-nos isso.

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