Uma tropa chamada “Movimento Referendo pela Habitação” entregou na Assembleia Municipal de Lisboa a proposta de um referendo para acabar com o Alojamento Local. Naturalmente, a proposta foi aprovada na semana passada com os votos a favor da esquerda em peso, à excepção do PCP, que se absteve, embirrando com a ideia a partir do momento em que deixou de a controlar. Todos os partidos da direita votaram contra. O processo seguiu para o Tribunal Constitucional.
Há uma série de procedimentos previstos na lei para os processos de Referendo Local, neste caso, por “iniciativa popular”, e não por iniciativa oficial e formal dos partidos. Mas uma coisa é o processo, outra coisa é a intenção. Trataremos deles separadamente.
A intenção é péssima. O Alojamento Local (AL) representa a diligência de muitas famílias e pequenos empresários para quem esta foi a possibilidade de refazer um modo de vida e obter um rendimento, depois da bancarrota de Sócrates e das limitações impostas pela respectiva ajuda externa. O AL reabilitou o centro histórico de Lisboa, que sobrevivia na miséria mais infame. Mas não só por isso.
Entretanto o AL cresceu, e com os anos criou economias periféricas que empregam milhares de portugueses e também muitos imigrantes. Acabar com o AL significa hoje em dia mandar milhares de pessoas para o desemprego. Exactamente o que a esquerda gosta: empregos só são bons no Estado. A nossa acarinhada esquerda detesta os pequenos empresários porque lhe fogem ao controlo, atrevendo-se a criar emprego fora do campo em que a esquerda manda. A ideia de acabar com o AL não é inocente.
Além da intenção, o próprio processo merece comentário. É de tal maneira revelador que os jornais e as televisões deram o assunto por encerrado e não se lhes ouviu nem mais um pio desde o dia em que souberam e noticiaram as irregularidades. Uma das regras obrigatórias definidas na lei do Referendo Local é a apresentação de, pelo menos, 5.000 assinaturas. E não podem ser assinaturas sortidas: a lei exige assinaturas de eleitores recenseados em Lisboa.
Este bando que entregou a proposta dizia que tinha reunido 6.550. A Assembleia Municipal de Lisboa, por uma questão de prudência, enviou o pedido ao Ministério da Administração Interna para fazer a verificação das assinaturas. Em vez de uma validação por amostragem, o Ministério verificou o processo com uma lupa, de um ponta à outra, e entregou uma resposta detalhada. E luminosa.
Afinal, em vez de 6.550 o processo só tinha 6.528 assinaturas. Desse universo, 240 subscritores estavam em duplicado (ou seja, a mesma pessoa tinha assinado mais do que uma vez); 12 subscritores estavam mortos; 843 eram eleitores recenseados fora do concelho de Lisboa; e 570 não eram sequer identificáveis. No total, só havia 4.863 assinaturas válidas.
Num canal de televisão, a cidadã, responsável, porta-voz, ou “coordenadora” do bando, tinha uma justificação impecável para cada irregularidade: Duplicados? Ah, as pessoas distraem-se e, com o empenho… eu própria já assinei a mesma petição várias vezes. Subscritores mortos? É natural: recolhemos assinaturas de muitos idosos, entretanto morreram. Eleitores recenseados fora de Lisboa? Ah pois, é para que vejam: essas pessoas foram expulsas da cidade. Garatujas impossíveis de identificar? É das caligrafias; e dos nervos; as pessoas escrevem de uma maneira que nem eu própria percebo. Etc.
Regressados do mundo fantástico das “plataformas” e do activismo, o que fica desta história? Fica, logo à cabeça, uma suspeita de fraude. E o risco de crime público de falsificação de documentos. Contra toda a evidência mediática, é uma questão de legalidade que deve invalidar o processo, se o direito português não estiver ainda definitivamente possuído pelos esforços esplêndidos da “cidadania”.
Estes admiráveis cidadãos estão a tentar obter uma lei; só devem poder consegui-la através de um processo que cumpra todos os procedimentos legais e que trate a lei com o devido respeito. Por outras palavras, quem quer obter uma lei para aplicar aos outros tem de se obrigar a cumprir a lei. Não pode começar por excluir-se a si próprio e considerar-se acima dela.