O povo é sábio e soberano. Excepto quando um partido “iliberal” ganha uma eleição por uma margem esmagadora, como 54% contra 32%. Aí, o povo continua a ser sábio e soberano mas foi enganado. Ou antes ou depois ou durante a eleição, tem de ter havido ali coisa. Até porque, como toda a gente sabe, os manipuladores estão todos à direita daquela linha vermelha que separa os bárbaros dos iluminados, os corruptos dos incorruptíveis, os disseminadores de fake news dos detentores de fact cheks, os nacionalistas dos globalistas, enfim, os “iliberais” dos “liberais”.

Este dilema foi instalado pela Esquerda, que encontrou uma nova linha amigo-inimigo, e pelo centro e pela direita “civilizada”, que, complacentes com o discurso ideológico dominante, não chegam sequer a estranhar o facto de a Esquerda os ter agora incluído (estratégica e episodicamente) no clube dos “bons”, dos “liberais”, um clube cujo leque vai da tal “direita civilizada” até à “esquerda multigéneros”.

Uma longa história

Tudo isto resulta de uma longa história, onde se misturam maniqueísmo e má-fé, temperados com alguma cegueira e ingenuidade.

A autodestruição do “socialismo real” na União Soviética e na Europa Oriental – ou na Europa Oriental e na União Soviética – trouxe um grande vazio às estratégias e projectos clássicos de contestação e destruição das “sociedades burguesas”. A agonia do comunismo no bloco ideológico e geopolítico do Pacto de Varsóvia, o triunfo do liberalismo anglo-americano, as teses neo-iluministas e neo-kantianas de uma nova paz, a corrupção das elites vanguardistas revolucionárias pela sociedade de consumo, impuseram aos vencidos de 1989-1991 a necessidade de uma reinvenção teórica.

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Algumas variáveis da equação estavam a ser alteradas pela realidade, uma realidade que a teoria não conseguia nem entender nem alcançar. Algo parecido já acontecera antes com o “emburguesamento” das classes trabalhadoras no Ocidente e com a conversão à classe média dos trabalhadores da indústria nos Estados Unidos, nos anos 50. Depois veio a substituição das antinomias ideológicas por antinomias “culturais” (diagnosticada e analisada por S.P. Hungtinton que, contudo, dogmatizou algumas conclusões em vez de as deixar como cânones de interpretação da realidade).

Todos estes fenómenos alteraram a teoria marxista da evolução social. Confirmando o seu poder de autodestruição criativa, o capitalismo pós-Guerra Fria transformou o mundo num grande mercado, onde a oferta e a procura passavam a determinar a divisão internacional do trabalho. A Europa e parte dos Estados Unidos foram-se desindustrializando e as classes operárias quase desapareceram do mundo Euro-atlântico, ou foram sendo relegadas para a marginalidade.

A migração de capitais e indústrias do Euromundo deu-se rapidamente para as ex-zonas do “socialismo real”, que abriam portas ao capitalismo para conseguirem algum desenvolvimento. Depois dos “Tigres” asiáticos, foi a vez da China pós Mao Tsé-Tung, a China onde Deng Xiaoping, a partir dos desastres do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural, inventou Zonas Económicas Especiais para ensaiar um “capitalismo de direcção central”, bem controlado e vigiado.

Contra as teorias optimistas daqueles liberais que, crentes na reprodução do modelo evolutivo europeu, pensavam que à revolução industrial e ao nascimento da classe média se seguiria, por inerência, o liberalismo político-social, a República Popular da China passou a grande potência económica ascendente, sem liberalização ou democratização políticas, antes, adoptando uma “democracia chinesa de Partido Único”. Na nova China a política continua a comanda a Economia, como o Presidente Xi não se cansa de fazer notar aos seus oligarcas.

Tudo isto tinha de levar a uma revisão dos dogmas do modelo evolutivo. O marxismo-leninismo não resistiu à revelação do universo concentracionário, do extermínio físico dos inimigos, da perseguição aos indiferentes. Nem ao balanço da economia e da sociedade. Atrás destas realidades veio, depois do negacionismo dos intelectuais orgânicos e da tentativa de responsabilização de Estaline, a crítica aos pais fundadores teóricos do sistema – Marx e Lenine – cuja estrela intelectual também decaiu.

A redescoberta de Gramsci

Desta queda dos ídolos veio a procura de novos guias para sociedades onde já não se assaltavam “Palácios de Inverno” ou se exterminavam hereges nas caves das Tchekas. E, retomando um tema antigo, um tema da revolução iluminista europeia, da revolução das mentalidades, descobriu-se ou redescobriu-se António Gramsci.

Gramsci tinha a biografia apropriada de pensador e mártir. No exílio interno e na prisão da Itália fascista, submetido à censura dos carcereiros, ainda que com tempo e acesso a obras de consulta, escrevera os Cadernos do Cárcere. Se tivesse tido a sorte dos intelectuais dissidentes da URSS não teria escrito coisa alguma: teria acabado com um tiro na nuca depois da autocrítica, ou apodrecido num campo de concentração, sem pena, papel ou tinta.

De qualquer forma, a partir dos anos 70, os escritos de Gramsci tornaram-se uma espécie de cartas de S. Paulo do neomarxismo ou do “marxismo cultural”. E Gramsci contribuiu para que se desenvolvesse o tema das diferenças estruturais ou histórico-sociais entre a Rússia – onde um Estado central dominava uma quase inexistente sociedade civil – e as sociedades da Europa Central e Ocidental, onde, fora do Estado, existia uma sociedade civil, através da qual, mesmo depois de uma eventual conquista do Estado pela Esquerda, as forças da burguesia manteriam poder e influência.

Daí vinha a importância da hegemonia que a classe burguesa, separando o poder político do poder económico, o Estado da Sociedade, poderia preservar, mesmo quando a Esquerda ou o Proletariado dominassem o aparelho do Estado.

A partir de uma leitura contemporânea de Maquiavel e das suas categorias analíticas do poder, Gramsci comparou o modo de actuação do Estado-poder político – pela decisão e pela coerção – e da sociedade civil, onde a hegemonia social se procurava através da influência e da conquista da direcção intelectual e da “superioridade moral”.

Como observou Perry Anderson, Gramsci escrevera os Cadernos com algum condicionamento de expressão, de linguagem, devido à esperada censura dos textos. Estava também a ler e interpretar o pensamento de alguns dos seus compatriotas, como Maquiavel e Croce, e a adaptá-los à ortodoxia marxista em revisão. A importância dos seus escritos vem também da indeterminação dos seus conceitos, uma actualização do marxismo-leninismo para tempos em que a força do Estado o tornava menos vulnerável ao assalto directo.

A longa marcha pelas instituições

Em sociedades onde as classes trabalhadoras estavam em extinção pela automação e desindustrialização, ou se tornavam conservadoras, a revolução teria de mudar de estratégia. Por isso o líder comunista estudantil Rudi Dutschke, em 1967, falava de uma “longa marcha através das instituições” a fim de capturar os centros de poder da sociedade civil – a religião, a família, a educação, os media, as leis.

Foi o que aconteceu e está a acontecer no Ocidente. À falta de classe trabalhadora como massa revolucionária – a que resta, em grande parte, vota na “direita radical” – partiu-se para a pesquisa e mobilização das micro-causas dos grupos marginais ou ressentidos, reais ou imaginários. Na enxurrada, e de forma gradual e silenciosa, vão desabando uma a uma as causas sociais da esquerda e vai-se perdendo o seu coração ideológico nas micro-lutas deste liberalismo individualista “de esquerda”.

A sociedade portuguesa é um exemplo de sucesso do modelo gramsciano: o poder cultural foi tomado, nos finais dos anos 50, pela Esquerda, que recuou com o sobressalto patriótico da guerra de África, mas que rapidamente se refez, até que o golpe militar de 74 a levasse à conquista do Estado. A resistência veio da sociedade civil, resistência às formas leninistas, mas não às formas gramscianas. Basta olhar para as ideias difundidas nas Ciências Sociais, nos media, na Educação, na Saúde, no Ambiente, e ver a forma como o Estado, nos seus aspectos alegadamente neutros, se deixa colonizar, para ver o sucesso local dessa “longa marcha através das instituições”.

Lições de Budapeste

A Hungria, ideologicamente, está no polo oposto de Portugal e não parece interessada em deixar-se espezinhar pela “longa marcha” da Comissão Europeia, feita de alegadas “violações do Estado de Direito” (acompanhadas de chantagem com os Fundos para a Reconstrução), de resoluções do Parlamento Europeu para impor a Agenda LGBTQ+ e os “novos Direitos Humanos” na Hungria e de tentativas de colagem de Viktor Orbán ao diabólico Putin – apesar de a Hungria já ter recebido mais de 600 mil refugiados e condenar a invasão da Ucrânia.

Ainda assim, e com tudo isto, Orbán e o Fidesz derrotaram uma coligação negativa, um verdadeiro arco-íris que ia dos (até serem contra Orbán) neo-nazis do Jobbick ao PS húngaro (a continuidade em evolução do antigo Partido Comunista). E ganharam 54% dos votos populares, contra os 32% da oposição, elegendo 135 deputados contra 56 da coligação opositora e 7 de um partido nacionalista identitário.

Qual a razão desta vitória em condições, à partida, adversas e com a ameaça e a chantagem (sobre a Hungria e também sobre a Polónia, que está na linha da frente a receber o grosso dos refugiados da Ucrânia) da senhora von Der Leyen de lhes cortar os fundos europeus de Reconstrução, a Bazuca, alegando a “corrupção”? Não deixa de ser extraordinário que, numa União Europeia onde as acusações de corrupção e os casos de corrupção se multiplicam, seja a “iliberal” Hungria a única a ser formalmente visada e acusada: o que e é que se passa?

O que se passa é que, por um processo gramsciano de hegemonia cultural, a ortodoxia da correcção política adoptou os conteúdos e os caminhos do marxismo cultural. E um país, um povo e um governo que se proclamem nacionalistas, conservadores e populares são uma coisa inadmissível para a harmonia e equilíbrio das distopias em formação. Além disso, a Hungria está a tornar-se um polo de resistência cultural, com livros, revistas, academias que enfrentam a ofensiva do marxismo cultural na batalha dos valores e das ideias.

É certo que a Europa Central e Oriental, que esteve sujeita aos regimes comunistas, ganhou à própria custa outras defesas contra este tipo de agressões culturais; e que o congelamento destas sociedades num modelo totalitário as conservou, também pela resistência, num quadro de valores nacionais e conservadores, sem as doçuras e as agruras individualistas e libertárias do Ocidente euroamericano do último meio século.

Talvez também por isto o conflito aberto na Europa com a ofensiva de Bruxelas para impor uma Agenda contrária à vontade popular nos ex-países comunistas – que, independentemente das ideologias específicas dos seus governos, são nacionalistas em política e conservadores em costumes – tenha tudo para não acabar bem.

Entretanto, Orbán e o Fidesz resistem nas urnas e não desistem do combate cultural. Chamam-lhe “iliberais” mas, argumenta Órban, o que é hoje o “liberalismo” e quem são hoje os “liberais”?

“Dizermo-nos hoje “não-liberais” é dizer que somos o Diabo. Mas, insisto, na política actual são os liberais que são contra a liberdade. Porque os liberais, que antes eram partidários do pluralismo, querem agora ter a hegemonia da opinião. Sim, sou hoje um lutador pela liberdade contra os liberais. E se sou um lutador pela liberdade contra os liberais, por que é que estou eu a lutar? Por uma “sociedade iliberal”, o que quer hoje dizer uma sociedade baseada na liberdade contra os liberais.”

(Viktor Orbán em entrevista a JNP, Expresso, 5 de Junho de 2021)