Em março de 1996, depois de algumas tentativas humilhantemente falhadas de entrar no jornalismo, subi as escadas de um edifício na rua Alexandre Herculano, bati à porta e fui pedir emprego no semanário “O Diabo”. Não levava nada para apresentar: não tinha nenhum currículo, não tinha nenhum curso de comunicação social e não tinha nenhuma carta de recomendação. Se bem me lembro, trazia apenas nas mãos tremelicantes um artigo escrito naquilo que deveria ser um péssimo português. Possivelmente curiosos por acharem este comportamento exótico, aceitaram-me. E, dessa forma improvável, comecei a trabalhar para Vera Lagoa.

Como se sabe, a juventude tem tendência para ser ignorante. Neste caso, confirma-se: eu era vagamente “jovem” e era, decididamente, ignorante. Por isso, não sabia bem quem era Vera Lagoa. Os detalhes escapavam-me, mas já tinha percebido, claro, que a “classe” a via com persistente desconfiança, com absoluto distanciamento e com indisfarçável temor. Isso, só por si, já era uma vantagem para quem estava à procura de diversão. Depois, havia o resto do mundo. Chegar a um congresso do PSD ou a um comício do PCP e apresentar-se como jornalista do semanário “O Diabo” era, em certo sentido, um exercício de insubordinação e uma aventura.

Para quem passou por tudo aquilo num juvenil estado de inconsciência, e sem na realidade ter tido a possibilidade de a conhecer bem, ouvir “A Grande Provocadora”, o Podcast Plus que o Observador acaba de lançar sobre a vida de Vera Lagoa, é ficar a saber hoje o que deveria ter sabido em 1996. Durante o Estado Novo, ela foi incansavelmente antisalazarista e teve a valentia de esconder várias vezes em casa militantes comunistas perseguidos pelo regime. Durante o processo revolucionário, denunciou os recém-convertidos que, tendo estado confortáveis na ditadura, procuravam agora, sofregamente, convencer o novo poder de que tinham sido marxistas desde o berço. Durante a democracia, combateu todos os que tentaram, em momentos diferentes, ser “donos disto tudo”. Esteve sempre contra, contra, contra.

Estreia. “A Grande Provocadora”. Episódio 1: A bisbilhoteira que faz tremer o país

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Olhando agora para trás, percebe-se que não deve ter sido fácil. Vera Lagoa teve coragem para enfrentar todos os que estavam do outro lado. Mas também teve a liberdade de enfrentar os que estavam do lado dela — o que muitas vezes é mais difícil porque exige que se assuma o risco de ficar sozinho. Vera Lagoa fez isso antes do 25 de Abril, quando organizou os concursos de Miss Portugal desafiando os que, como ela, estavam então na esquerda e a acusavam de estar a ser cúmplice do “colonialismo”. E fez isso depois do 25 de Abril, quando desafiou os que, como ela, estavam então na direita. Aconteceu, por exemplo, em 1976, na altura em que foi internada durante algumas semanas por problemas de coração depois de terem colocado uma bomba no semanário que dirigia na época. Quando teve alta, não gostou do que viu: “Ficaram umas pessoas a tomar conta do jornal, que o estavam a puxar para um campo que não era o meu. Mais à direita do que estavam a colocar-me. Fechei o jornal, pura e simplesmente.” Como se vê, Vera Lagoa era, para usar o título de um programa de rádio, uma “radical livre”.

Em Portugal, não há muitas pessoas assim. É escusado repetir o que toda a gente sabe desde D. Afonso Henriques: somos um país demasiado pequeno para haver muita coragem e demasiado fechado para haver muita liberdade. Perseguição política, censura, bombas, jornais fechados à força, amigos perdidos. Vera Lagoa passou por tudo, suportou tudo e sobreviveu a tudo. E há um detalhe importante: fez isso sem nunca perder a graça. Passados tantos anos, até os inimigos reconhecerão que, sem ela, isto tem muito menos piada.

Há outra coisa que eu devia ter sabido em 1996. É que Vera Lagoa nasceu quando já tinha quase 50 anos. Até 1966, ela era Maria Armanda Falcão. Só aí é que mudou de nome, começou a escrever nos jornais e entrou numa nova vida. Até nisso foi um exemplo para quem, eventualmente, possa estar numa idade semelhante.

Até ao último dia de vida — literalmente até ao último, a 19 de agosto desse ano de 1996 — Vera Lagoa escreveu contra aqueles a quem chamava “a cambada”. É uma grande expressão, que resume muito do que precisamos de saber sobre o país. “A cambada”, naturalmente, nunca lhe perdoou. Mas vamos ser sinceros: Vera Lagoa também não queria nenhum perdão.