Foi por vontade própria que o lançamento da sua obra ocorreu no auditório do Padrão dos Descobrimentos –  “nobre local”, como lhe chamou quando chegou a sua vez de falar naquele acto.  A obra, em três grossos volumes (Ed. Perfil Criativo), mais de 2.000 páginas no total, é uma história de Angola. Ao título “Angola”, juntou um sugestivo subtítulo “Desde Antes da sua Criação pelos Portugueses até ao Êxodo destes por Nossa Criação”.

Carlos Mariano Manuel

Carlos Mariano Manuel, é dele que se trata, é um angolano de 64 anos nascido num lugar do norte do território, Negage no tempo colonial especialmente conhecido por estar aí instalada uma Base Aérea. A sua vida, contada pelo próprio, no primeiro volume da obra, ajuda a compreender a serena visão que tem da História do seu país, que estuda/analisa vai para 25 anos. Uma conversa pessoal de umas duas horas robustece a impressão.

O rigor e a profundidade que a narrativa histórica da sua obra deixam transparecer (dois dos seus méritos), é seguramente fruto da observância de critérios em que assenta a sua visão da História. Entre eles o de olhar para o passado tendo sempre presente realidades que o foram marcando. “Não é honesto”, diz, sujeitar tempos antigos a apreciações inspiradas em referências e lógicas do presente.

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Para Carlos Mariano Manuel também faz fé que as fontes documentais e bibliográficas são as que melhor preservam a integridade da substância da história. Foi guiado por esse princípio que a pesquisa a que se entregou para escrever a sua obra tenha feito dele um grande frequentador de vários arquivos históricos – Berlim, Lisboa e Luanda. Ou leitor de obras fundamentais – com a de António Cadornega à cabeça.

O subtítulo da sua obra encerra duas ideias fortes. Uma, a de que Angola, tal como a conhecemos, no seu território, nas suas fronteiras, é obra de portugueses; outra, a de que a debandada dos portugueses por alturas da descolonização não foi estranha a influências dos angolanos. A este desfecho da conturbada transição de Angola do período colonial para a independência chama “lamentável, lamentável, lamentável”.

A data escolhida por Carlos Mariano Manuel para lançamento público da sua obra, em Lisboa, foi o dia 29 de Outubro. Uma maneira de evocar uma batalha que nesse mesmo dia de 1665 se feriu entre uma hoste do rei do Congo, D. António, e outra, constituída por portugueses e potentados locais, seus aliados, para os quais a sorte pendeu. Na sua interpretação, foi por via de feitos como o de Ambuíla, que a autoridade central de Luanda se foi alargando àquele que viria a ser o actual território de Angola.

Na mesa de honra do pequeno auditório do Padrão dos Descobrimentos está outro angolano, Marcolino Moco, prefaciador de um dos volumes da obra, que partilha integralmente do pensamento do autor. O que os portugueses encontraram quando chegaram àquelas partes de África foi uma amálgama de potentados, muitos deles rivais entre si, cada com uma identidade própria. Juntá-los a todos, num esforço que se arrastou até ao dealbar do século XX, isso foi obra de portugueses.

A apresentação no Padrão dos Descobrimentos

O entendimento que ambos têm das origens remotas de Angola afasta-se nitidamente de outras versões da História de Angola, estas ainda a fazer carreira, nitidamente sujeitas a reduções políticas, ideológicas ou simplesmente de conveniência. Angola é apresentada nessas versões como uma entidade pré-existente à chegada dos portugueses, que a ocuparam e colonizaram até ao seu resgate por efeito de um rasgo libertador protagonizado “pelo partido”. A história ao partido pertence….

O tão celebrado rei Mandume, que a historiografia oficial angolana apresenta como um incansável resistente à ocupação do seu potentado Cuanhama pelos portugueses, estava, afinal, feito com os alemães do antigo South West Africa, a Namíbia actual. Se tivesse conseguido levar a sua resistência até às últimas consequências – claudicou e rendeu-se aos portugueses no seguimento da derrota da Alemanha na Grande Guerra – as terras do seu potentado teriam sido incorporadas na então colónia alemã.

A lição de Carlos Mariano Manuel ou Marcolino Moco não é inédita entre intelectuais e pensadores africanos. A Leopold Senghor ouvi benevolentes considerações acerca de Portugal, dos portugueses e da história da sua secular passagem por África numa entrevista que lhe fiz em Bissau, vai para 40 anos. A Luiz Cabral, Aristides Pereira e Jonas Savimbi, em diferentes circunstâncias, ouvi coisas parecidas.

A honraria de “nobre local” conferida por Carlos Mariano Manuel ao local onde lançou a sua obra, sentiu-a ele devida pelo facto de ter sido dali (o cais do Restelo ou de Belém, como no passado foi conhecido) que partiram as naus que deram corpo à expansão marítima portuguesa – um grande número delas nunca mais fazendo a “torna viagem”, sepultadas, elas e os homens nelas embarcados, no fundo de mares.

Mas também à consciência de que os malefícios da expansão marítima são apenas parte de um todo que também compreende muito de bom. A começar pelo seu valor científico. Foi por via da expansão marítima portuguesa que o Atlântico Sul e suas bordas, na América e em África, entraram na história do mundo, fazendo assim cair por terra lendas e mitos de Santo Agostinho ou de Ptolemeu, que era tudo o que sabia sobre aquelas ignotas paragens.

A obra em três volumes

A dimensão e o estatuto que é hoje o da língua portuguesa, falada em vários pontos do mundo por mais de 250 milhões, é também obra da expansão marítima. Em muitos dos Estados nos quais se implantou como língua oficial, a língua portuguesa tem o incomensurável valor de um factor de identidade e de unidade nacional – agregando o que línguas e falares diversos tendiam a desunir. Não fora a expansão e a língua portuguesa não valia seguramente mais do que vale o catalão.

Médico e académico de profissão, dedicado à História quando há 25 anos se abalançou na obra agora concluída, Carlos Mariano Manuel exalta o Padrão dos Descobrimentos simplesmente levado pela visão serena que cultiva da História antiga do seu país. A lição nisso implícita não deixa de ser uma “carapuça” enfiada na cabeça de portugueses que vêm na história de Portugal um infame buraco negro. Como aquele deputado que um dia viu o Padrão dos Descobrimentos como legado de um passado sinistro, fácil de extirpar com a ajuda de um camartelo que o reduzisse a escombros.