Desde pequena que o jornalismo me seduziu. Terá contribuído para tal, o facto de o meu pai ter sido também jornalista. Habituei-me a esse mundo que me fascinava. Fui fazendo formações e quando chegou a febre das rádios locais, lá estava eu, na génese de uma delas. A Rádio Juventude, de Castelo Branco, foi o começo e onde o jornal onde desenvolvi a minha carreira, ao longo de 25 anos, me foi buscar.

Ainda hoje, a redação que lá se encontra fui eu que a ‘fiz’.  Sentia-me realizada e a fazer o que gostava. Entreguei-me de alma e coração. O jornal cresceu também com a minha influência e também da equipa que criei. Houve muita entrega, muito esforço. Mas esta é uma profissão desgastante, sobretudo para quem se dedica demasiado. E, eu, talvez o tenha feito em demasia. Não havia horas, não havia regras.

Hoje, passados dez anos depois de ter tido um AVC, estou impedida de fazer aquilo de que gosto e para o qual já me sinto perfeitamente capaz. Por imperativo legislativo, fui reformada por invalidez absoluta, nos primeiros tempos depois deste episódio, devido ao grave estado em que fiquei, na altura. Aliás, estou a tentar perceber o que pode ser feito, sem ser penalizada. É que a minha reforma já se encontra abaixo do salário mínimo. E, apesar deste ‘acidente’ de percurso, sei que tudo o que fiz ao longo desses 25 anos foi feito com muita entrega, responsabilidade, empenho e, sobretudo, amor.

Estávamos a 30 de abril de 2014. Era quarta-feira, o dia mais agitado, o do fecho de jornal. Terminada a capa, havia que colocar os conteúdos online, já depois de almoço. Acabei cedo e saí. À noite, tinha um trabalho agendado numa localidade a 15 quilómetros do jornal. Mas, antes disso, a meio da tarde, decidi ir para casa para descontrair um pouco. Naquela altura morava numa casa encantadora com uma vista invejável, que possuía umas escadas com uma janela enorme que iluminava a casa. Gostava de viver ali. A casa no Bairro do Castelo estava a escassos metros da rua larga que descia para a ‘cidade’ e onde habitualmente deixava o carro. Fazia, muitas vezes, o caminho até ao jornal a pé.

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Nessa quarta-feira, ao sair do jornal, recebi informação de um acidente grave. Fui surpreendida, já estava no carro, não tinha máquina, não tinha papel… Mas, fui, claro. O registo fotográfico foi feito com o telemóvel e fui para casa. Fiz os telefonemas necessários, para ‘compor’ a notícia. Coloquei-a no online, preparei-me para o trabalho que tinha agendado, e saí.

Ainda não tinha percorrido os escassos metros até ao carro quando recebo um telefonema da minha irmã. O intuito era chamar-me a atenção de que a notícia que colocara online, estava cheia de erros. Aconteceu algo muito estranho: inúmeros erros frases sem nexo, palavras trocadas, enfim, tudo baralhado. Liguei a um colega e pedi-lhe que fizesse as respetivas correções porque eu estava de saída. Agora, pensando à distância terá sido, talvez, este o primeiro sinal do que viria a acontecer poucas horas depois.

Depois de um outro trabalho, regressei à cidade, a conduzir, fui para casa e volto a subir a rua íngreme. Desde que saíra da localidade, a ligeira dor de cabeça que sentira ao longo da tarde parecia agravar-se, mas para mim era algo ’normal’ que eu sempre desvalorizara. Cheguei estranhamente cansada lá acima.

Em casa, aumentava a minha indisposição e uma forte dor no braço esquerdo foi o primeiro sinal de alerta. Deitei-me no sofá. A enxaqueca persistia e aumentava, assim como a dor no braço, e eu pensei, de imediato, num AVC… Mas essa era uma doença de ‘velhos’, eu “apenas” era hipertensa. Esquecia-me muitas vezes da medicação… Era um descontrolo total. Não sabia eu, na altura, que o AVC já há muito deixara de ser essa tal “doença de velhos” e atingia gente cada vez mais nova. E, nesse dia, foi a mim que afetou.

Dei entrada no Hospital Amato Lusitano, em Castelo Branco já inconsciente e às sete da manhã fui transferida para Coimbra. Dias depois, regresso à cidade albicastrense, ainda sem muita consciência.

Ali fiquei, parece-me, sem grande assistência e o meu braço esquerdo terá ficado comprometido logo em Castelo Branco. Não sei, nunca saberei! Sei que no Centro de Reabilitação Rovisco Pais me disseram que o meu braço esquerdo tinha sido ignorado e já nada havia a fazer. Era tarde demais. Fiquei internada aí, e foi importante todo o trabalho que ali realizei, apesar de alguma desumanização que senti, de resto, esta questão estendeu-se por quase todos os locais por onde passei.

Depois de ter percebido que tinha sido ignorada no Hospital em Castelo Branco, prometi esforçar-me e dedicar-me para contrariar o prognóstico que ouvi: e que me tinha sido vaticinado na cidade albicastrense. “A senhora nunca mais vai sair dessa cadeira de rodas”. Não sabia se ia conseguir, diziam que não, mas ia tentar e desistir foi termo que deixou de fazer parte do meu léxico. Mas, continuando a ser ignorada, começo a sentir-me um ’peso’. Não sabia o que fazer, estava sem fisioterapia. Decidi estabelecer etapas de recuperação.

Sentia que queriam prolongar a minha dependência e não percebia porquê. E a primeira etapa era deixar a fralda. Certo dia, quando pedi para ir à casa de banho, no Rovisco Pais, disseram-me: ‘Não tem fralda? – Então faça para a fralda que já a mudamos’. Senti-me pequenina, um verdadeiro estorvo. Assim começou a minha luta. Fiz queixa. Não foi bem aceite, mas acho que serviu de exemplo, para me começarem a tratar os doentes de outra forma. Não queria ser especial. Queria ser respeitada!

Regresso a Castelo Branco, com consulta marcada no Rovisco Pais, algum tempo depois. Saí com uma ortótese ‘universal’ que me sustinha o pé e que ainda hoje utilizo. Nas consultas subsequentes, a médica acaba por me reencaminhar para Coimbra, para realizar uma ortótese específica para o meu pé. Assim foi e andei cerca de cinco anos com essa ortótese, até que se degradou e partiu. Com a segunda ortótese, não foi diferente.  Aleija-me, fere-me o pé e a empresa apesar de, posteriormente assumir o erro, não assume a viagem de deslocação para realizar uma nova. Ainda hoje uso essa ortótese, já muito degradada.

Antes de ter sido assistida no Rovisco Pais e no Hospital de Castelo Branco, passei pela Escola Superior de Saúde de Castelo Branco e por um Centro de Recuperação, numa aldeia próxima, para não interromper a fisioterapia, que se tornou incomportável financeiramente.

No início de todo o processo, precisava ser operada ao pé. Ao referir isso numa consulta de fisiatria do Hospital de Castelo Branco, a primeira que tentei marcar foi-me recusada e quando procurei perceber o porquê, nada me disseram, fiz queixa e acabei por ser chamada. Esperei seis meses, fiz uma reclamação e exigi um vale cirúrgico. Ao fim de três meses, estava a ser chamada para cirurgia, depois “de este vale também se ter extraviado” no hospital.

Entretanto, perante as hipóteses apresentadas, escolhi uma clínica de referência, em Coimbra. Uma operação simples e que teria evitado a deslocação e mais despesas ao Estado, tivesse o fisiatra de Castelo Branco cumprido com o seu papel.

Neste momento, frequento uma associação, onde faço fisioterapia e ginásio. Trata-se de uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), que pago obviamente, acima dos 300 euros, porque tenho consciência que parar não é solução para mim e já que o Estado não me proporciona essa fisioterapia, direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, tenho eu que pagar, como quase sempre fiz ao longo destes dez anos. Mas, nesse local, a fisioterapia não é intensiva e isso faz a diferença.

Não sou acompanhada em qualquer serviço, nem tenho acesso a qualquer tipo de consultas. Não tenho um fisiatra, não tenho uma equipa multidisciplinar que me oriente e me conduza de forma eficaz e me garanta a minha qualidade de vida, nem assistência pessoal para ter uma vida independente. Não tenho fisioterapia consistente, não tenho nada. Que resposta é esta a uma sobrevivente de AVC? O pouco que tive e tenho foi por minha iniciativa e a pagar, como ainda acontece hoje.

Então, deixem de propalar frequentemente, os inúmeros apoios que o Estado disponibiliza à Deficiência. O meu certificado multiusos atribui-me 60 por cento de incapacidade, mas não tenho, nem nunca tive, qualquer tipo de apoio.

É este o resumo do meu ‘calvário’, em nome da minha recuperação. Repito: Afinal, quais são os tão propalados apoios à deficiência? Eu não os conheci e continuo sem conhecer.

Cristina Saraiva, jornalista ao longo de 25 anos, em imprensa, foi aposentada por invalidez, em 2014, depois de um AVC hemorrágico. Não quis resignar-se à doença e decidiu aceitar o convite da Beira Baixa TV onde faz voluntariado. Escreveu um romance que se encontra neste momento em fase de revisão e conclusão.

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

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