Num gesto magnânimo, o Governo achou por bem outorgar ao povo português uma Magna Carta, que recebeu um pomposo nome: Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Lei nº 27/2021, de 17 de Maio). Pela mão da Ministra da Presidência, que tinha feito esta ameaça há já algum tempo – para a qual, aliás, oportunamente aqui alertei (Novas políticas, ou novos polícias do pensamento?, Observador, 25 de Julho de 2020) –  a censura está de volta a Portugal.

No seu artigo 2º, esta Carta declara “que a República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital”. Quando era de supor que se penalizassem todas as formas de censura existentes no ciberespaço, nomeadamente as praticadas preconceituosamente por quem controla as redes sociais e exclui conteúdos contrários à ideologia dominante, o Governo ficou-se apenas por uma declaração demagógica. É pena.

Proclama-se o livre acesso universal à internet no artigo 3º, onde se prevê “a adopção de medidas e acções que assegurem uma melhor acessibilidade e uma utilização mais avisada, que contrarie os comportamentos aditivos e proteja os consumidores digitalmente vulneráveis”. Mas, não só não se esclarece o que se entende por uma “utilização mais avisada”, como se passa um atestado de inferioridade aos “consumidores digitalmente vulneráveis”. As medidas repressivas dos Estados autoritários são sempre implementadas com intuitos proteccionistas, alegando uma pretensa necessidade de defender os mais débeis que, neste caso, são aqueles a quem se pretende impor uma “utilização mais avisada” da internet.

A alínea j) deste mesmo artigo prevê “a definição e execução de medidas de combate à disponibilização ilícita e à divulgação de conteúdos ilegais em rede e de defesa dos direitos de propriedade intelectual e das vítimas de crimes praticados no ciberespaço”. É salutar o combate à desinformação e à publicidade enganosa mas, num Estado de Direito, é às instâncias jurisdicionais que compete a defesa dos direitos dos cidadãos, nomeadamente a sua honra e propriedade intelectual, bem como o combate às práticas ilícitas e aos “crimes praticados no ciberespaço”.

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A liberdade responsável deve ser o princípio que rege a comunicação social, cuja tutela corresponde exclusivamente aos órgãos jurisdicionais. O único limite aceitável é o imposto pela lei e, por isso, permitir que comissões administrativas exerçam acções de combate a conteúdos supostamente impróprios é, na realidade, implementar a censura, que não só é uma prepotente ingerência do Estado, como um desrespeito pelo poder judicial, o único competente em questões de abuso da liberdade de expressão. Só os tribunais podem e devem julgar estes casos, porque a criação de entidades com competências censórias, sob pretexto do chamado ilícito de mera ordenação social, é uma prática totalitária, que viola o princípio da separação de poderes.

No número 3 do artigo 4º diz-se que “todos têm o direito de beneficiar de medidas públicas de promoção da utilização responsável do ciberespaço e de proteção contra todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente contra a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.”

Se se censura o Mein Kampf, de Adolf Hitler, por promover o ódio racista, proíbam-se também as obras marxistas que incitam à luta de classes que, na realidade, mais não é do que racismo socioeconómico. A proibição de “violência contra pessoa ou grupos de pessoas” também se aplica ao aborto e à eutanásia, que são, indiscutivelmente, práticas violentas contra pessoas ainda não nascidas, ou em fim de vida?! Noticiar que um jovem branco foi morto por jovens de outra raça é um incitamento ao ódio étnico, ou seja, racismo, mas se a vítima for de cor, e brancos os que a mataram, também se deverá omitir a raça dos presumíveis assassinos?!

Mais uma vez, os contornos de estas “medidas públicas” afiguram-se, pela sua indeterminação, susceptíveis de usos políticos que atentam contra direitos fundamentais dos cidadãos. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, que vincula Portugal, diz que “no exercício dos direitos e no gozo das liberdades, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei, com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros, e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.”

No que respeita ao direito contra a desinformação, o artigo 6º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital estabelece que o Estado protege “a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”. Para este efeito, “considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos” (Artº 6º, 2). Não é inocente que a desinformação não seja aferida pela falsidade dos factos, mas pela narrativa, que é ‘desinformativa’ quando pretende “enganar deliberadamente o público”, ou ameaça “os processos de elaboração de políticas públicas”.

Que dizer, então, das notícias de carácter religioso? Para um anticatólico, um milagre, ou as aparições em Fátima, são, como é óbvio, “uma narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas, ou para enganar deliberadamente o público”. Ou seja, ao abrigo da Lei nº 27/2021, a informação religiosa sobre acontecimentos de natureza sobrenatural pode agora ser considerada como ‘desinformação’ e, como tal, censurada!

Outro tanto se diga da chamada ideologia de género. Para qualquer cientista digno de este nome, não há dúvida que, precisamente por ser uma ideologia, não tem fundamento científico e até contradiz o que a ciência afirma: é, portanto, uma “narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público”.

Mais grave ainda é que “o Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados” (Artº 6º, nº 6). Estas “estruturas de verificação”, se constituídas por representantes de órgãos de comunicação social subsidiados pelo Estado, agirão em função dos interesses do Governo, para não perderem o acesso aos fundos, a que hipotecaram a sua independência editorial e a que devem a sua sobrevivência económica. Como diz o provérbio, “não se morde a mão que nos alimenta”.

O Conselho Regulador da ERC entende que a referida lei “carece, no mínimo, de cautelas” e, por isso, teme que conduza “a uma limitação desproporcionada e injustificada da liberdade de expressão”. Na realidade, a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital viola o artigo 18º da Constituição, em que se afirma que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição». Acrescenta que, nos casos em que a lei fundamental o permita expressamente, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, «não podem […] diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais».   

É verdade que o socialismo sempre teve uma relação difícil com a liberdade e, por isso, não é de estranhar esta iniciativa legislativa do Governo. Mas é lamentável que nenhum partido político democrático, com assento parlamentar, tenha votado contra esta lei do PS, que descaradamente ameaça a liberdade de expressão em Portugal.  Espera-se que agora, pelo menos, tenham a decência de pedir, ao Tribunal Constitucional, que declare a manifesta inconstitucionalidade da eufemisticamente chamada Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Na realidade, mais não é do que a Magna Carta da censura em Portugal.