1 Porque será? É uma forma de ser, uma doença, um grande receio? Onde buscar uma explicação racional que nos conforte do vexame de que nada ou quase nada (não me ocorre nenhuma excepção) seja devidamente levado a sério em Portugal? Porque é que desde o governo, aos próprios socialistas, passando pela media, “pontificadores” e influentes, todos nos surgem como aliados na singularidade da sua apreciação das coisas -as da política, as do país, as da vida? Tratando-as por igual, relativizando perigosamente o que por natureza impediria que o fosse e graduando tudo com o mesmíssimo nível de substância e importância? É um mistério. Um mau mistério. Tudo se mistura, o grave e o não grave, o essencial e o acessório, o principal e o secundário nessa relativização apoucada que aliás muito explica e nos explica. Como se a vida nacional se resumisse a uma interminável telenovela, somando episódios sempre exibidos como equivalentes entre si e não separados à nascença, tal como exigiria o uso de um critério mínimo de racionalidade política (ou mesmo só de mera racionalidade).
2 E haverá melhor prova disto do que a escassez de grandes debates nacionais sobre questões nacionais? Reflexões sérias, debates mobilizadores. Estão em extinção como as baleias ou como se diz no Brasil “há, mas estão em falta”. Evoco — repito — discussões a sério. Determinantes para o rumo de Portugal e decisivas para as escolhas – saber o que se escolhe e porquê é uma espécie de assinatura. Não tem sido o caso. Descendo ao concreto que é no concreto que a gente se entende, ocorrem-me dois simplicíssimos exemplos, imediatamente perceptíveis: a regionalização logo á cabeça e pelas más razões: quando se trata a questão como ela tem vindo a ser aflorada — por meias palavras, atrás da porta e de baixo da mesa — além de se estar a ser manhoso e a fazer batota, está-se automaticamente a desconvocar o país para um debate digno desse nome e alargado a todos os portugueses. E no entanto, no mapa político interno a ameaça é de peso e haverá poucas questões, de tão arrasadoras consequências quanto esta, anunciada mas não maioritariamente desejada, o que agrava a trama e a manha. Segundo exemplo: a reforma da segurança social e haverá algo mais premente? Face a este tema crucial o governo hesita entre o disfarce e a fuga a sete pés: tudo menos ser capaz de debatê-lo, metendo mãos à obra e convocando os portugueses para a grande aventura de lhes garantir boas notícias para os seus filhos e netos. O tempo que vá passando, um dia o PS sai de cena, logo se vê. Subentendido os vindouros que tratem disso. Como o único que poderia tratar bem disso — e do resto – não virá, os vindouros previsíveis não se distinguem por aí alem dos residentes que deixarão de o ser. Ou seja, estamos conversados: a reforma mais-que-necessária-entre-todas-as-que-também-o-são, não se fará. Podia juntar à lista do que deveria ser frontalmente debatido essa dificuldade trágica em que se transformou – por exemplo — a procura de casa para jovens: dá-se-lhes um pontapé para longe ou muito longe das cidades onde trabalham e onde beneficiariam de alguns apoios familiares, com isso hipotecando-lhes qualquer projecto de futuro solido a que o esforço e o mérito os poderia conduzir. Pior sinal dado pelos governantes á juventude pela qual também são responsáveis, parece-me impossível. Mas quem discute a sério a urgência e a premência de tudo isto?
3 Se uma coisa é as coisas serem o que são — verdade imperecível — outra é apesar de tudo o poder de observação, critério e transmissão que temos sobre elas. E como nada nos veta esse poder, espanta que a sua prática seja afinal tão incomum em quem se “ocupa” da coisa publica ou dela é o mensageiro. Dar a ver, longa e abundantemente, a chegada da adolescente Greta a uma doca portuguesa com autoridades políticas presentes e com um relevo cujo empolgamento se prendia muito mais com a sua (explorada) “persona” do que com a (explorada) agonia do planeta, é levar muito pouco a sério as coisas. Não se tratou apenas de mais um lance da política espectáculo sem a qual a própria política hoje mal respira, mas da abdicação de dois excelentes instrumentos de vida: a escolha e o critério. Naquele longo desembarque falharam ambos.
O que logo encadeia mais dúvidas: como se poderá contar com algum português anestesiado como estará pela uniformização apatetada do que ocorre inter e extra muros? Alheado das grandes questões que o deviam interpelar pela recusa do poder em abordá-las ; desconvocado pela media mais ágil no consumo diário de fait divers e intrigas partidárias do que num presente capaz de moldar um futuro; e desfocado da realidade tal como ela é e não como a parte dela que lhe mostram, como? Se quem detém o poder, não separa o trigo do essencial, do joio da trivialidade inconsequente, será difícil fazer crer aos portugueses que têm responsabilidades no país e obrigações perante ele. E ainda menos levá-los a alistarem-se nas frentes de batalha em que o país poderá reclamar que se tome parte. Não há convite possível à vontade para intervir na vida colectiva se se persistir na pegajosa ficção de que está tudo bem e no disfarce de que Portugal pisa o melhor caminho (para chegar onde?) Pelo contrário: a desresponsabilização galopará até ao fim dos tempos e o país quedar-se-á, meio amorfo, pouco convicto, pouquíssimo exigente.
Uma realidade um bocadinho melancólica, inteiramente previsível e infelizmente verdadeira.