Quando Pessoa menciona o Outono, fá-lo com uma imagem fúnebre: “No meu cansaço perdido entre os gelos/E a cor do outono é um funeral de apelos/Pela estrada da minha dissonância…” Ao visitar os que já me partiram, reparo nas lápides do cemitério, e dou por mim a calcular o tempo que viveram. Situo todos esses estranhos como gente da minha terra e imagino-os em algum destes incaracterísticos lugares, procurando referências pessoais para a vida que cada um teve: este teria frequentado a escola com o tio; este poderá ter tentado disputar em vão a atenção da minha mãe, a que em boa hora e por uma série de acasos acabou por dispensar ao meu pai. Crio vidas imaginárias para estas pessoas, coloco-as em locais da vila e em ocasiões do nosso passado comum, na mesma missa, no mesmo jogo de futebol, no mesmo funeral ou na mesma barraca de farturas, todos à mesma hora, num tempo irreal por sintetizado na traiçoeira memória de infância. Reparo nas pedras, as que foram mudando: do usual mármore dos anos 70 e 80 para os granitos do século XXI. E reparo nas datas, em particular no mês da morte.

O Outono e o Inverno são para se morrer de velhice, sem o choque, do “era tão novo”, com morte atribuível a “causas naturais” na era em que coronavírus eram só coronavírus e não desculpa para deploráveis fazerem carreira em infotainment; a Primavera e o Verão são para se morrer de acidente ou de qualquer outra coisa que nos impeça o luxo de completar a estrada da nossa dissonância com a decência da previsibilidade. Visitei o Pordata e confirmei, com os dados de óbitos entre 1980 e 2020, que não há neste intervalo de 40 anos um único que se destaque por ter mais óbitos entre Abril e Setembro que na conjunção dos trimestres Janeiro-Março e Outubro-Dezembro. Em 40 anos, mais de 25% dos óbitos ocorrem sempre no primeiro trimestre do ano e apenas em 14 dos 40 é que estes não foram superiores a 25% nos meses do Outono, de Outubro a Dezembro. Uma lapalissada, dirá qualquer leitor atento. Contudo, não será por algo se apresentar óbvio que passa a ser irrelevante.

Regresso a casa para almoçar e verifico que neste Outono já morreu tudo o que havia a morrer. Morreu a Geringonça, morreu o orçamento, morreu (pelo menos uma parte d’) o CDS, morreu a expectativa de uma vacina milagrosa que impediria o contágio quer dos “negacionistas” pelos prontamente vacinados, quer dos vacinados entre eles, morreram as cadeias de distribuição, e morreu a esperança de vivermos sem ser neste estado permanente de sabor a cobre na boca, fartos que estamos de conhecer a doença e impotentes, neste rochedo esquecido por Judas, para engendrar qualquer cura. Dizem-me que Chega e IL vão crescer imenso havendo eleições; também me dizem que Rangel seria melhor que Rio e que este melhor que Costa, por sua vez melhor que Catarina Martins, etc., etc., etc., numa sucessão de melhorias que de bom têm apenas a sua escala em graus de péssimo. Placebos. Respeitáveis, talvez até desejáveis, mas meros placebos. “Toma um comprimido, que isso passa”, dizia ironicamente o grande António Variações. “A cor do Outono é um funeral de apelos”, com o “meu cansaço perdido entre os gelos”. O Papa Francisco fala com a voz da Greta Thunberg e Bill Gates com a de Heinz Doofenshmirtz. O Super-homem foi incapaz de educar o filho para que vivesse tranquilamente a sua bissexualidade sem necessidade de a exibir como virtude e aparecem “doutores humanitários”, eventualmente para contraste com doutores veterinários, e que nos tratam como gado enquanto os segundos tratam os bichos como pessoas. Desligo a televisão e volto ao cemitério, onde permanecem inertes os que realmente ainda estão vivos. “Toma uma comprimido, que isso passa”.

Vagueio pelas campas e encontro alguns que faleceram no Verão. Pergunto-me das quantidades de esperança que levaram com eles para o fundo da terra. “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”? E não havendo alma? Vale algo a pena se a alma nem pequena chega a ser? Continuo a caminhar no cemitério e retomo a busca dos que faleceram nos meses invernais. Estes voltam a ultrapassar os dos meses estivais e tudo volta a fazer sentido. Portugal nasceu no Outono, em Zamora, de onde não vêm nem bons ventos nem bons casamentos, no ano da graça de 1143, e deverá ter morrido num dos Invernos desde então. Ou, adaptando livremente o que Michel Houllebecq disse acerca da vida pós-covid, Portugal depois de morto pela doença prolongada da esperança adiada, na contínua “estrada da (sua) dissonância”, é igual ao que era quando estava vivo, só um bocado pior.

Nota: o autor escreve de acordo com o acordo ortográfico que firmou com ele próprio.

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