Nas escolas, o ano lectivo arrancou sem auxiliares suficientes para assegurar o funcionamento das actividades. E sem dinheiro para suportar os custos de água, luz e papel higiénico, com o ministério a apertar o cinto orçamental ao limite. Nos hospitais, os atrasos nos pagamentos amontoam-se e batem recordes. Estão em causa horas extraordinárias, a reposição de medicamentos, a liquidação de despesas normais de funcionamento. Nos transportes, como explica José Manuel Fernandes, observa-se à deterioração rápida da qualidade dos serviços do Metro de Lisboa, sem fundos para pequenas reparações. E, imagine-se, sem sequer capacidade de emissão de novos bilhetes. Na economia, o investimento público caiu acentuadamente para níveis impensáveis, em nome do cumprimento da meta do défice, quando, ainda há um ano, se prometia que por ele passaria a recuperação económica.
Quem acompanhou o debate político nos anos da troika recordar-se-á das pesadas acusações que situações análogas valeram ao então governo PSD/CDS – enquadradas por centenas de dias de greves, pressão mediática constante e debates inflamados pelos deputados da esquerda parlamentar. Ora, onde estão esses deputados hoje? Sentados na cadeira parlamentar, mas calados. Onde estão as greves diárias contra os apertos orçamentais? Foram convertidas em silêncios e ocasionais protestos simbólicos. E onde estão as notícias nos jornais? Foram remetidas a rodapés, porque os jornais seguem as polémicas e, em 2016, ninguém está a polemizar. Escrevi-o este Verão e recupero: com PS no governo, não foram apenas BE e PCP que mudaram, mas também jornalistas que, cobrindo temas sociais, abdicaram do dramatismo – parece que, em Portugal, deixou de haver fome, pobreza e emigração. Enfim, tudo o que justificava gritos agora exige sussurros.
Isto diz muito acerca da habitual hipocrisia partidária. E explica muito acerca da qualidade e da crise do jornalismo português. Mas informa ainda mais sobre uma dimensão demasiadas vezes esquecida do debate: com uma sociedade civil fraca, a iniciativa política fica refém das corporações. Quem as controlar dominará o debate público, definirá o que é polémico, decretará o que é politicamente legítimo e, se necessário, obterá tolerância perante a sua incompetência governativa. E quem as controla é a esquerda de PCP e BE. O segredo do equilíbrio da geringonça está aí: na CGTP e na mordaça sindical. Ora, isto até pode ser muito jeito ao PS e aos seus parceiros, mas a médio prazo arrasta duas consequências.
Primeiro, a troca da perseguição do Bem Comum pela perseguição dos interesses corporativos. Não é inócuo entregar as preocupações sociais às corporações que, politizadas, assumem o controlo do debate público em benefício dos seus próprios interesses políticos – e não, como ingenuamente muitos imaginam, em prol da resolução de problemas sociais. Tem dúvidas? O raciocínio é elementar: se, aos olhos das corporações, uma mesma situação varia em gravidade em função da cor partidária do governo, então o que realmente inquieta as corporações não é a situação em si mas, efectivamente, a orientação política e partidária do governo. A alteração comportamental da CGTP e dos seus sindicatos, actualmente movidos por uma inovadora compreensão para com o governo, não deixa dúvidas quanto às suas motivações.
Segundo, entregar o debate público às corporações é dar força à sua orientação política (afecta maioritariamente ao PCP) e, assim, alterar o equilíbrio de forças do regime. É que, se a legitimidade política está nas mãos das corporações e as corporações estão nas mãos da esquerda, então através dessas corporações a esquerda adquiriu um monopólio natural de validação das suas políticas – o que dificulta o exercício do poder pela direita. No PSD e no CDS, há que perceber e aceitar isso. Eis a barreira que, mesmo vencendo eleições, a direita já não conseguirá furar. Eis a regra não-escrita do regime que, em 2016, a geringonça consagrou.