“Resta-nos analisar a mais bela forma de governo, e o mais belo dos homens: a tirania e o tirano.”
(Platão, A República, Livro VIII)

1 Trigger warning

Uma das expressões a que não podemos escapar para compreender os nossos dias é a de “trigger warning”, popularizada em língua inglesa por decorrer da cultura de sensibilidade máxima que o mundo anglo-americano tem exportado para todo o Ocidente. Em língua portuguesa, não é fácil encontrar uma expressão tão sedutora para exprimir o sentido de aviso, advertência ou sinalização de conteúdos possivelmente ofensivos ou capazes de despertar reações traumáticas.

Estamos habituados a esses alertas quando, nos noticiários, o jornalista nos avisa de que as próximas cenas – geralmente de guerra, terrorismo ou acidentes graves – podem ferir a suscetibilidade das pessoas mais sensíveis. E as gerações mais velhas recordarão a bolinha vermelha no canto superior da televisão para indicar a desadequação dos programas ou filmes para os mais novos. Mas este mecanismo popularizou-se agora no mundo académico para assinalar livros potencialmente perigosos (como já aconteceu com Immanuel Kant) ou temas potencialmente traumatizantes – tudo para que as gerações mais novas não sejam emocionalmente perturbadas na sua redoma de vidro.

É, então, com o objetivo de não inquietar as almas mais sensíveis que importa deixar um trigger warning ao livro publicado por Tom Nichols, em 2017: A Morte da Competência: os perigos da campanha contra o conhecimento estabelecido (que desenvolve o artigo inicial publicado no The Federalist).

E que choque pode provir deste livro? Com todo o atrevimento, Tom Nichols afirma que, ao contrário do que está a acontecer nas nossas sociedades, uma sociedade democrática não nos torna iguais em termos de conhecimento: há pessoas que sabem mais do que outras em diferentes assuntos e não podemos afirmar que todas as opiniões são igualmente válidas. Na verdade, as opiniões dos especialistas são mais válidas do que as restantes e a maioria de nós é ignorante em relação à maioria dos assuntos. A sua conclusão é a de que viver numa sociedade democrática não pode ser desculpa para desvalorizarmos o conhecimento especializado e não reconhecermos a nossa ignorância nos assuntos em que não somos especialistas.

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2A morte da competência

O diagnóstico de Tom Nichols debruça-se sobre a sociedade norte-americana, reconhecendo que o seu país tem uma longa história de desconfiança perante os intelectuais (o que justificaria, nomeadamente, a sua longa tradição conspirativa). Já Alexis de Tocqueville tinha relacionado a desconfiança em relação à autoridade intelectual com a natureza da democracia norte-americana, mas Nichols considera que a situação se tem agravado:

“O conhecimento de base do americano médio é tão baixo que este há muito deixou de estar “desinformado”, passou a fase de estar “mal informado” e vai agora a caminho de se afundar no “agressivamente errado”. As pessoas não se limitam a acreditar em coisas parvas, mas resistem ativamente a aprender só para não terem de abdicar dessas crenças.”

O livro parte de exemplos que lhe chegaram de outros especialistas e debruça-se sobre o modo como as nossas sociedades têm destruído a noção e o valor da competência, abordando diferentes dimensões, desde o ensino superior à comunicação social e à internet – e cada uma delas merecendo um artigo próprio.

De acordo com Nichols, o caminho percorrido pelas sociedades democráticas tem defraudado as expectativas mais otimistas: “Pensava-se que anos de melhoria do ensino, o acesso facilitado aos dados, a explosão das redes sociais e a remoção dos obstáculos à participação no debate público iriam melhorar a nossa capacidade de deliberar e decidir.” Em bom rigor, as coisas parecem ter ficado piores e “qualquer discussão pública sobre qualquer assunto descamba numa guerra de trincheiras, em que o objetivo mais importante é o de provar que a outra pessoa está enganada”.

É fácil adivinhar que o autor escreve a pensar nos fenómenos que têm marcado os últimos anos nos Estados Unidos, relacionando a morte da competência com o crescimento dos movimentos populistas, a gradual polarização política e social, a popularização das teorias da conspiração, as ideias de fake news e pós-verdade e, claro, a eleição de Donald Trump. E, neste sentido, a sua posição aproxima-se do argumento apresentado por Jason Brennan, em Contra a Democracia, que já abordamos aqui.

Se Nichols reconhece que as democracias são mais propensas à contestação de tudo o que está estabelecido e que é isso mesmo que as torna democráticas, defende ainda assim que elas não podem prescindir das elites intelectuais e do conhecimento especializado que elas produzem. Na verdade, levar o princípio democrático da igualdade até às últimas consequências significaria destruir a própria democracia.

Concordemos ou não com o valor absoluto do argumento de Nichols, não podemos deixar de reconhecer o fenómeno que o autor identifica e a sua pertinência, na medida em que ele nos confronta diretamente com a natureza das sociedades democráticas: fará parte da essência da democracia dar o mesmo valor à ignorância e ao conhecimento? (o que seria traduzido, na versão de democracia liberal, pelo igual direito ao voto)

3A morte da democracia

A ideia de autodestruição da democracia não é uma novidade. Naquela que foi a primeira grande crítica apresentada contra a democracia, o ateniense Platão já tinha exposto esse argumento no Livro VIII de A República. De acordo com a dinâmica cíclica dos regimes de poder, as próprias condições democráticas conduzem à sua degradação:

“num Estado assim, o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os precetores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em ações; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.”

Apesar de encontrarmos naquele Livro uma análise mais materialista, a crítica mais ampla de Platão à democracia tem um cariz essencialmente epistemológico: a democracia é a forma de governo da maioria e a maioria é ignorante, pelo que Platão não hesitaria em responder afirmativamente à pergunta com que terminamos o ponto anterior. Um regime político que, em vez de se basear no conhecimento dos mais sábios, conduz o seu destino através das opiniões (doxa) das massas ignorantes não conseguirá escapar ao caos. A crítica política de Platão à democracia corresponde, nesse sentido, à crítica filosófica aos sofistas: encontramo-nos no domínio das muitas verdades e não da Verdade-com-letra-maiúscula.

De facto, foi essa cidade democrática que condenou Sócrates e é por isso que Hannah Arendt diz, no delicioso ensaio com que abre A Promessa da Política: “Foi ao longo do seu processo de reflexão sobre as implicações do julgamento de Sócrates que Platão chegou à sua conceção da verdade como o oposto exato da opinião e, ao mesmo tempo, à sua noção de uma forma de discurso especificamente filosófica como oposto rigoroso da persuasão e da retórica.”

A consequência pode aparecer como surpreendente aos olhos de muitos: de acordo com Platão, a democracia degenera em tirania. O grupo maioritário (o povo) acabará por escolher um protetor e esse protetor tenderá a reforçar o seu poder até adotar uma natureza tirânica. A tirania será, por sua vez, alvo de deterioração, mas durante esse processo caberá ao tirano repor a ordem social e impor, de alguma forma, uma só verdade. Isso acalmará as massas até nova transformação social.

O paralelo com a atualidade – com esta espécie de democracia tardia em que vivemos – não é despiciendo: não só vivemos hoje em tempos de morte da competência, desvalorização do conhecimento científico e abandono das referências de hierarquia e ordem, como também nos revemos em noções de pós-verdade e pós-factualidade. Mas estaremos condenados à morte da democracia e ao apelo da tirania?