Devo também a André Abrantes Amaral a leitura de Elizabeth Strout, cuja tetralogia se lê de um só fôlego. No último dos quatro livros, Lucy à beira-mar, a narrativa decorre em contexto de pandemia e remete para eventos recentes como a invasão do Capitólio, o norte-americano, no dia 6 de janeiro de 2021. Strout procura o difícil exercício dos nossos tempos, que é colocar-se na pele do outro, tentar a compreensão do outro lado. É por vezes demasiado óbvia nessa tentativa, o que elimina parte da tarefa cognitiva que deveria resultar da autonomia do leitor – ainda assim, há pelo menos uma passagem a que vale a pena regressar.

Lucy, a narradora, recorda como, pouco tempo antes da pandemia, foi convidada para ir à Universidade de Chicago falar sobre o seu livro de memórias, que relata uma infância de pobreza e de como a pobreza significa, acima de tudo, exclusão social no sentido profundo de solidão. Quando chega à universidade, encontra uma turma de jovens ensimesmados e provenientes de famílias abastadas, a quem o livro dela nada diz. Estes estudantes universitários, que indicam como livros favoritos títulos de bestsellers, nunca passaram por provações e isso impede-os de se relacionarem com a obra de Lucy Barton: é apenas uma mulher branca de meia-idade a escrever sobre pobreza.

Como muitas vezes acontece a Lucy ao longo da vida, esta experiência constitui um momento de profunda humilhação e é isso que lhe permite dizer:

“Durante uma hora, naquele dia nos arredores de Chicago, senti novamente a minha humilhação de infância de maneira tão profunda. Interroguei-me: e se eu continuasse a sentir-me assim a vida toda, e se todos os empregos que tive na vida não fossem suficientes para realmente constituírem uma carreira, e se eu me sentisse o tempo todo desprezada pelas pessoas ricas deste país, que faziam troça da minha religião e das minhas armas? Eu não tinha religião e não tinha armas, mas, de repente, senti que via o que essas pessoas sentiam; eram como a minha irmã, a Vicky, e compreendi-as. Tinham-nas feito sentir-se mal consigo próprias, olhavam-nas com desprezo, e elas já não aguentavam mais. (…) E, então, pensei: Não, aquelas pessoas no Capitólio eram nazis e racistas. E, assim sendo, a minha compreensão – o meu entendimento do partir das janelas – acabou ali.”

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Strout é particularmente hábil ao destacar o poder da linguagem, nomeadamente o efeito gerado por designarmos o outro como nazi ou racista: a compreensão deixa de ser possível. Trata-se de uma velha estratégia política, a diabolização do outro. E é particularmente eficaz em tempos extremados e polarizados, e especialmente útil para aqueles que, confiantes de deterem a verdade final e absoluta, querem excluir certas vozes do espaço público.

Mas se este é um mau princípio na vida privada, no espaço político é particularmente perverso: quando deixamos de ouvir os que não pensam como nós, quando os diabolizamos ao ponto de considerarmos que a sua opinião não interessa – mesmo ou sobretudo quando esse adversário político tem um apoio crescente da população –, estamos a colocar-nos na posição de não querer compreender as preocupações de uma parte significativa da população. A diabolização impede a compreensão e a falta de compreensão gera tempos sombrios.

É verdade que os tempos sombrios são uma constante da história, e tendem a desaparecer com a mesma regularidade com que surgem. Mas há qualquer coisa de mais assustador nos nossos tempos: é que parecemos estar cada vez mais condicionados pelas ferramentas digitais de que somos cada vez mais dependentes.

Em Os superficiais: o que a Internet está a fazer aos nossos cérebros, Nicholas Carr chama a atenção para o facto de o maravilhoso mundo digital nos estar a tornar mais estúpidos ou, pelo menos, mais superficiais. Temos mais dificuldade em estar concentrados, lutamos mais com a tarefa de ler um livro do princípio ao fim, a nossa capacidade de memorização vai-se deteriorando, sentimos que é muito mais árduo pensar em profundidade. Parece ser sobretudo difícil pensar de forma lenta – que é, na verdade, a única forma de pensamento possível. Ou, como diziam os antigos (que sabiam sempre tudo, quando mais não seja tendo à mão dois ditados contraditórios): depressa e bem, não há quem.

Contudo, o problema tem-se agravado: a lógica das redes sociais digitais está a colonizar o modo como nos relacionamos politicamente na vida real. Vivemos cada vez mais entre aqueles que pensam de modo semelhante ao nosso, replicando as bolhas sociais criadas pela lógica algorítmica das redes sociais. Desabituamo-nos, nessa medida, de sermos desafiados por posições diferentes das nossas e somos tentados a “bloquear pessoas”, excluindo do nosso mundo aqueles que dizem coisas estranhas. E se não nos conseguirmos proteger absolutamente do que esses dizem, somos treinados a, rapidamente, “denunciar alguém” para que as instituições competentes possam impor a nossa visão do mundo. E com isto, vamo-nos habituando a uma hipersensibilidade, que nos faz confundir ideias diferentes com violência física e psicológica.

Ainda mais preocupante é que isto aconteça em contexto eminentemente político, aquele em que o esforço de compreensão é mais importante. Mesmo aí está a generalizar-se a ideia de que podemos “abandonar a conversa”. E a verdade é que é mais fácil não nos esforçarmos, é mais rápido diabolizarmos o outro e é muito menos cansativo não empreender o jogo democrático, que consiste em trocar argumentos com aqueles que defendem ideias diferentes e, eventualmente, mostrar que as nossas são melhores. Vivemos tempos sombrios em que o mais fácil se tornou abandonar a sala.