1 A tensão da civilização

Uma das maiores referências intelectuais do século XX é o filósofo austríaco Karl Popper, célebre na filosofia da ciência, mas particularmente perspicaz no domínio da reflexão política. A sua distinção clássica entre sociedades abertas e sociedades fechadas, consagrada em A sociedade aberta e os seus inimigos e A Pobreza do Historicismo, permite-nos refletir sobre as características das sociedades abertas ocidentais, construídas sobre os valores da democracia liberal, e compreender as suas forças e fraquezas. Uma dessas fraquezas é aquilo que Popper designa por “tensão da civilização”, que resulta do exercício da liberdade que as sociedades abertas permitem. Esse exercício pressupõe decisões individuais e consequente responsabilidade pessoal e assunção de riscos, do que resultam dificuldades e desafios que originam a tal tensão da civilização. Como diz João Cardoso Rosas, no ensaio “Democracia e Anti-liberalismo”:

“A tensão da civilização alimenta uma certa nostalgia pelo alegado paraíso perdido da sociedade fechada, na qual não era preciso carregar o fardo da razão e da responsabilidade individual. É claro que o regresso à sociedade fechada ou tribal não é possível, e é também certo que ela não constituía nenhum paraíso. Mas a nostalgia existe em todas as sociedades abertas e ela é, segundo Popper, a raiz do totalitarismo.”

Importa ter em conta que não é possível expurgar esta tensão – ela é inerente às sociedades abertas, existindo em certos períodos de modo latente e manifestando-se, em outros, com mais intensidade. João Cardoso Rosas destaca, por isso, a vantagem analítica do conceito: podemos usar a ideia de tensão da civilização para analisar os movimentos antiliberais que pressionam as sociedades abertas, oferecendo, quase sempre de modo autoritário, soluções que visam eliminar as dificuldades do exercício da liberdade.

Ora, a última década foi precisamente marcada por uma forte pressão antiliberal, que se tem vindo a fazer sentir quer à esquerda, quer à direita. Por um lado, os movimentos identitários, as políticas woke, o politicamente correto; por outro, os projetos nacionalistas e autoritários, muitas vezes assentes em dinâmicas de radicalismo digital. Entre as lutas culturais dinamizadas pelos dois lados da barricada, passou a designar-se por democracias iliberais aqueles regimes que, reivindicando legitimidade popular decorrente de eleições, se revelam interessados em deixar cair os princípios institucionais liberais. A ocidente, foram rápidos os dedos que se levantaram contra esses regimes e esses líderes, indicando as suas veleidades iliberais, os seus tiques autoritários, as suas despreocupações com os direitos individuais e a liberdade pessoal. E eis que chegou 2020.

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2 O paradigma bioético da autonomia

Quase dois anos depois de termos sido invadidos por uma condição generalizada de medo face ao vírus SARS-CoV-2, temos já algumas dificuldades em recordar como era o mundo antes de 2020, mas no domínio da bioética vigorava aquilo que designamos como o paradigma da autonomia. Como já aqui tratamos, esse paradigma amadureceu ao longo da segunda metade do século XX e encontrava-se ainda em ampliação no início do novo século (em especial, no respeitante à condição dos menores e incapazes).

Construído em torno dos valores kantianos e do liberalismo filosófico da dignidade humana e autodeterminação individual, o paradigma da autonomia representava um aprofundamento dos valores democráticos e significou colocar o paciente no centro da decisão médica. Afirmou-se, assim, contra o anterior paradigma de paternalismo médico, que tinha o médico no centro do processo de decisão como fonte de autoridade e conhecimento. Recordemos, a esse propósito, os efeitos da Convenção de Oviedo, em vigor em Portugal desde 2001, que fazem depender a legitimidade de qualquer intervenção médica ou farmacológica do consentimento do paciente (art. 5.º). O paradigma da autonomia é simbolizado, então, pela ideia de consentimento livre e informado como forma de respeito pela dignidade individual.

Naturalmente, esta mudança de paradigma ampliou os espaços de decisão individual e colocou inúmeros desafios às políticas públicas de saúde, designadamente no domínio da vacinação. Isto porque a obrigação de vacinação aparecia como incompatível com o novo paradigma da autonomia – e embora pudessem permanecer resquícios de vacinação obrigatória, como acontece entre nós, a ideia de ser implementada no século XXI era quase inabitável. Na verdade, o paradigma da autonomia, na boa tradição kantiana, assenta na ideia de Razão que cede perante os factos objetivamente apresentados pela Ciência, pelo que bastaria apresentar a informação às pessoas para que elas, autonomamente, se decidissem em prol da vacinação, tornando desnecessária a sua obrigatoriedade.

No entanto, as coisas não se processaram exatamente assim: na verdade, à medida que o paradigma da autonomia se foi ampliando, a adesão à vacinação foi decrescendo. Apresentam-se tipicamente quatro explicações para esse fenómeno, que se prendem com um desgaste gradual da credibilidade científica nas últimas décadas. Em primeiro lugar, esse desgaste foi acontecendo em resultado de casos de fraude científica ou falta de rigor académico, abrindo espaço para ataques dos movimentos anticientíficos. Em segundo lugar, importa ter em conta os contributos do pós-modernismo, que considera a ciência moderna um produto patriarcal e colonizador que deve ser questionado em nome de outras epistemologias. Simultaneamente, a atividade médica e farmacêutica viu-se enredada nas complicações da lógica capitalista, desde as pressões das grandes empresas na procura de lucro até aos comportamentos ambíguos de alguns médicos no envolvimento com essas empresas. Por fim, temos um movimento que resulta da própria lógica democrática, que corrói os valores da autoridade e do conhecimento e tende a igualar todas as vozes no espaço público.

Estes fatores foram conduzindo a uma redução crescente da decisão de vacinação nos países ocidentais, ao mesmo tempo que enfraquecia a possibilidade de esta resultar de uma imposição estatal. Por essa razão, parte importante dos estudos e discussões na área da bioética até 2020 dedicava-se à questão de saber como lidar com esta tensão entre o respeito pela autonomia individual e a necessidade coletiva de vacinação. Como solução de compromisso entre os dois valores, aceitava-se a ideia de que a resposta passava por convencer a população, discutindo-se então estratégias de comunicação para esse convencimento.

De facto, um dos tópicos recorrentes neste domínio prendeu-se com o uso da linguagem: a linguagem médica, demasiado complexa e hermética, deveria ser adaptada por forma a que a lógica científica se tornasse compreensível para as pessoas comuns, diminuindo o fosso entre o médico e o paciente (aliás, uma das razões apontadas para o facto de as respostas anticientíficas se terem tornado tão populares prende-se precisamente com o facto de elas serem mais simples). A pandemia veio tornar ainda mais relevante a dimensão comunicativa, pensada agora em termos de políticas públicas (há todo um vocabulário específico que invadiu o nosso quotidiano e que faz recordar Victor Klemperer e o seu LTI – Lingua Tertii Imperii: Notizbuch eines Philologen, de 1947).

3 A vacinação contra a covid-19

O desafio com que se depararam, então, as autoridades políticas na Europa e nos Estados Unidos foi o de desenvolver estratégias eficazes de comunicação e convencimento para a vacinação, uma vez que tínhamos como adquirido o valor do paradigma da autonomia. E notemos que o princípio da autonomia não é um estímulo à não-vacinação – é simplesmente o espaço aberto a que essa decisão seja tomada individualmente, com a assunção de responsabilidade pessoal no exercício dessa liberdade individual.

Naturalmente, deve haver limites ao exercício individual de liberdade quando se trata de uma doença com propagação coletiva: aí, a esfera individual deve ceder espaço à defesa comunitária. E foi este o argumento utilizado para comunicar a importância da vacinação: ela seria fundamental para “vencer o vírus”, “salvar os mais frágeis”, “devolver-nos a liberdade”. Mas o modo apressado como as vacinas foram desenvolvidas, as autorizações para usos de emergência e as incertezas quanto aos seus efeitos reais numa doença que afeta gravemente apenas um número reduzido da população fizeram com que a adesão à vacinação não fosse a desejada. Fazendo uso da sua autonomia, muitos na Europa ocidental e nos Estados Unidos optaram por não se vacinar.

No que diz respeito a Portugal, o facto de termos atingido níveis de vacinação tão elevados resulta, em parte, de nos encontrarmos sempre um ou dois passos atrás face às ideias que vão proliferando nos outros países ocidentais, neste caso de desconfiança perante a ciência e a vacinação (se outras razões concorrem com esta, como a excessiva cobardia dos portugueses ou a sua dependência face ao estado, é um outro tema). Já no leste da Europa, e com uma adesão inversa à nossa, a razão parece ser a de desconfiança face ao estado, motivada por razões históricas.

A verdade é que não foi necessário muito tempo para que aquelas desconfianças se mostrassem justificadas: de facto, os últimos meses de 2021 revelaram que a vacina não impede o contágio, limitando os seus efeitos reais à proteção da pessoa vacinada (esta última parte ainda não foi posta em causa). E com isto, toda a campanha do governo português, que ergueu orgulhosamente a bandeira do país com a percentagem mais elevada de população vacinada do mundo, esboroou-se. Ao contrário do que foi assegurado, uma taxa de vacinação que deveria ser mais do que suficiente para assegurar a imunidade de grupo revelou-se uma farsa, e a vacina que se limita a garantir uma proteção individual tem de ser reforçada a cada 6 meses. Vencer o quê? Salvar como? Libertar quem?

Afinal, o que correu mal?

4 Vacinação obrigatória e outras medidas iliberais

Se os efeitos da vacina foram mal avaliados cientificamente, a reflexão terá de ser levada a cabo por parte dos cientistas, que devem assumir os seus erros. Se as autoridades políticas tinham conhecimento de que os efeitos não eram os divulgados e enganaram propositadamente as suas populações, terão de responder politicamente. Certo é que a tão defendida vacinação foi incapaz de produzir os efeitos desejados de eliminação do vírus, mesmo nos países em que praticamente toda a população elegível se encontra vacinada, como é o caso do nosso.

Mas as reações não têm sido no sentido de um processo de autorreflexão sobre o que correu mal e como proceder com esta nova informação. Pelo contrário, muitos governos parecem simplesmente ter decidido abandonar os valores do respeito pela autonomia individual, teimando numa lógica de controlo sanitário autoritário. Encabeçados pela eminentíssima presidente da Comissão Europeia, falam hoje abertamente na imposição da vacinação, pondo em causa o paradigma da autonomia que surgiu precisamente para impedir que os estados disponham como querem do corpo daqueles que vivem nos seus territórios (recordemos o julgamento dos médicos nazis em Nuremberga ou o caso Tuskegee, nos Estados Unidos).

Como deixamos que isto acontecesse em apenas dois anos? É verdade que, como notamos inicialmente, a tensão da civilização já existia antes de 2020. E é verdade que uma análise histórica nos mostra que o efeito principal das pandemias é o de acelerar as mudanças já em curso. Mas como funciona esse “efeito pandémico” que levou a que a maioria das pessoas aceitasse tão passivamente as investidas contra os princípios básicos de dignidade humana e autonomia individual?

Em que momento é que nos começou a parecer normal que a Primeira-Ministra da Nova Zelândia sentisse que lhe cabe a decisão de autorizar os seus cidadãos a visitar familiares e amigos e utilizar as suas casas de banho? Que na Austrália se tenham adotado medidas verdadeiramente draconianas e iliberais? Que no Reino Unido houvesse indicações sobre a moderação sexual da população? Que na Alemanha se pretenda limitar o número de pessoas que podem entrar em casa de não-vacinados? Ou que na Áustria tenha sido proposto um confinamento seletivo para não-vacinados? E em que momento é que passamos a achar normal mostrar aos trabalhadores de restaurantes, ginásios ou discotecas informações da nossa vida privada? E que temos a obrigação de fiscalizar a vida íntima dos outros? E dependermos da apresentação de certificados e/ou testes para desempenharmos tarefas profissionais, numa clara violação do direito ao trabalho?

Retomo a imagem do crédito social chinês. Há dois anos, escandalizávamo-nos com uma ferramenta de controlo estatal que parecia retirada de um mundo distópico. Em que momento é que passamos a aceitar que os nossos próprios estados façam o mesmo? E em troca do quê? De mais regras para salvar o Natal? Mais aulas perdidas? Mais uma semana em casa a tomar conta das crianças, com o custo da eletricidade e dos alimentos em escalada e uma tarifa social de internet que é simplesmente vergonhosa (como chama a atenção Susana Peralta no último Fora do Baralho)? E mais um estado de calamidade que já está decidido até praticamente ao final do mês de março só porque sim?

Há pouco mais de dois anos tudo isto nos pareceria burlesco, absurdo, do domínio da ficção distópica. Mas hoje parecemos adormecidos perante aquilo que os governos decidem fazer. Mais do que isso, estamos a criar dinâmicas sociais e políticas perigosas:

Por um lado, a metáfora da guerra que foi utilizada para descrever o combate ao vírus, para além de falhar redondamente no seu objetivo uma vez que um vírus não pode ser vencido, predispõem-nos mentalmente para uma lógica de guerra. E numa lógica de guerra, aqueles que não estão ao nosso lado estão contra nós e tornam-se um alvo a abater. É exatamente isto que tem acontecido nas sociedades ocidentais, com uma radicalização crescente das posições públicas e uma tentativa de silenciar quem tenta questionar ou discordar da mensagem oficial.

Por outro lado, e perante o silêncio de quase toda a sociedade, vemo-nos no incrível paradoxo de termos (apenas?) a extrema-direita em muitos países europeus a fazer a defesa da liberdade individual e a luta contra as medidas excessivas do estado. E isto ao mesmo tempo que os estudos apontam para um retrocesso democrático nos dois últimos anos e o uso político do medo prolifera (a reação desproporcionada à variante Ómicron e os seus efeitos nos países africanos deveria envergonhar-nos, como chamam a atenção Mia Couto e José Eduardo Agualusa).

Em que momento é que deixamos isto acontecer?

Karl Popper pode ajudar-nos. Hoje sentimos a tensão da civilização aqui: na tentativa de regressar a um tempo pré-pandémico, de segurança e de riscos diminuídos, e por isso vamos alimentando a nostalgia por um certo paternalismo. É possível que esta seja uma resposta biológica normal: face a uma ameaça que se perceciona como perigosa, a dinâmica de grupo sobrepõe-se à lógica individualista. E isso traduzir-se-ia na tal ânsia por um paternalismo, que não é agora apenas médico, mas é sobretudo estatal e que vai determinando o nosso comportamento, limitando os nossos direitos, asfixiando a nossa liberdade. E esta talvez seja a nossa guerra: não contra o vírus, mas contra quem, fazendo o jogo do medo, está a transformar de forma irreversível o mundo em que vivíamos.