Uma área de formação indispensável nos cursos de ciências da saúde é a da Bioética. O termo terá sido utilizado pela primeira vez por Paul Fritz Jahr em 1927, mas é com a obra Bioethics: Bridge to the Future, de Van Rensselaer Potter, que se populariza como reflexão ética no domínio das ciências da vida e da medicina, a partir da década de 70. O seu estudo debruça-se sobre o comportamento moral no domínio da investigação clínica e os desafios colocados pelos novos desenvolvimentos tecnológicos, como a clonagem, a edição genética, o uso de embriões ou a aplicação da nanotecnologia.

Trata-se de uma área multidisciplinar, que convoca, entre outros, filósofos, juristas, médicos e biólogos, para pensar questões que decorrem do facto de termos um corpo biológico e de os avanços tecnológicos terem multiplicado as possibilidades de transformação desse corpo biológico. Ou, na deliciosa formulação de Maggie Little, a bioética é a reflexão que os anjos não fazem: na medida em que são seres incorpóreos e imortais, não vivem a experiência de um corpo biológico que é o objeto final da bioética. A relevância do tema é de tal ordem que os principais nomes da filosofia contemporânea, como Peter Singer e Michael Sandel, se dedicam a ele.

Em certo sentido, podemos dizer que a Bioética é uma reflexão sobre limites – sobre o facto de “poder fazer” não significar necessariamente “dever fazer”. Há princípios e regras que se impõem para lá da possibilidade técnica e essa reflexão é particularmente relevante quanto à vacinação para o vírus SARS-CoV-2.

1. Os antecedentes da Bioética

A segunda metade do século XIX assistiu a vários momentos de comportamento abusivo por parte de médicos que, aproveitando os mais recentes desenvolvimentos científicos, procuravam novas soluções terapêuticas. Mas o momento considerado fundamental para a reflexão ética na área da investigação clínica remete-nos para as experimentações realizadas por médicos alemães durante o regime nazi em prisioneiros dos campos de concentração (bem como a aplicação do programa de eutanásia involuntária). Essa atuação daria origem a um dos julgamentos de Nuremberga: em 1947, foram julgados 23 médicos, 16 dos quais foram considerados culpados e 7 executados. Desse julgamento resultaria o Código de Nuremberga, que afirma, logo no seu primeiro artigo, aquele que será o princípio fundamental da ética aplicada à investigação médica: a pessoa sujeita à experimentação deve dar o seu consentimento voluntário.

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Aos nossos olhos, tal princípio parece uma evidência, mas o caminho para a consagração do consentimento livre e informado estava apenas no início. Em 1964, a Associação Médica Mundial aprova a Declaração de Helsínquia, que estabelece as regras fundamentais para a investigação médica. Nela encontramos o princípio do consentimento, mas também a determinação daquele que será o pilar ético da área da saúde: o respeito pela dignidade humana, no sentido que filosoficamente designamos por kantiano.

2. As duas principais teorias éticas modernas

O filósofo Immanuel Kant é, de facto, uma referência fundamental para o domínio da Bioética – mas importa recordar que, no domínio da ética moderna, temos duas teorias principais que se apresentam como concorrentes: a ética utilitarista e a ética kantiana ou deontológica.

A primeira delas, criada por Jeremy Bentham no final do século XVIII, é uma teoria consequencialista – i.e., uma teoria que avalia a correção das nossas ações considerando as suas consequências – e defende que uma ação boa/correta é aquela que gera as melhores consequências. O utilitarismo tem sido alvo de diferentes formulações, mas vamos entender aqui por “melhores consequências” aquelas que geram o maior bem-estar para o maior número de pessoas.

A ética formulada por Kant opõe-se a este princípio consequencialista, considerando que uma ação é boa/correta se estiver de acordo com os princípios éticos que devem regular as nossas ações – e isto independentemente das consequências. O que está aqui em causa, em consonância com a restante filosofia de Kant, é o respeito pela dignidade do ser humano como o único ser capaz de ser livre usando a Razão. A Razão permite-nos identificar os princípios que devem orientar a nossa ação – que se apresentam como imperativo categórico – e a nossa ação será boa/correta se estiver de acordo com esses princípios. E como devemos entender esse imperativo categórico? As duas formulações apresentadas por Kant são: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne lei universal” ou “age de tal forma que trates a humanidade sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Em oposição ao utilitarismo, mesmo que uma ação produza o maior bem-estar para o maior número, ela não será correta se isso significar que esse bem-estar é conseguido à custa de uma minoria ou de uma única pessoa. Nesse caso estaríamos a usar esse ser humano (ou essa minoria) como meio para atingir um fim e, desse modo, a violar a sua dignidade.

É este respeito incondicional – independentemente das consequências – pela autonomia humana como fundamento da dignidade humana que dará forma à reflexão ética na área da saúde ao longo do século XX.

3. O nascimento da Bioética

Apesar da sua importância, o Código de Nuremberga e a Declaração de Helsínquia não eliminaram, por si, comportamentos abusivos na investigação médica. Aliás, um dos argumentos usados em defesa dos médicos nazis foi o de que a investigação médica levada a cabo sem recurso a consentimento e sem considerar efeitos adversos seria uma prática generalizada da comunidade médica e não uma característica especificamente nazi. As décadas seguintes foram, nesse sentido, marcadas por inúmeros casos que se tornaram de conhecimento público e que aumentaram o grau de polémica. Destacaremos, pela sua relevância, dois deles.

O primeiro diz respeito à experimentação desenvolvida por Gregory Pincus e John Rock, durante os anos 50, a propósito da pílula contracetiva: o dispositivo que viria a mudar radicalmente a sociedade ocidental implicou testes em mulheres de Porto Rico, que se voluntariaram na procura por um método contracetivo eficaz, mas desconhecendo que estavam a participar em ensaios clínicos. Os termos desse desconhecimento conduziram a várias acusações levantadas contra aqueles investigadores por se terem aproveitado da situação de pobreza e iliteracia dessas mulheres. Três delas morreram durante o ensaio, mas os seus corpos não foram autopsiados pelo que nunca se estabeleceu uma relação de causalidade e se desvalorizaram possíveis efeitos secundários.

O segundo caso remete para um estudo clínico desenvolvido entre 1932 e 1972, em Tuskegee, Alabama, pelos Serviços de Saúde Pública dos Estados Unidos, denominado Tuskegee shyphilis study. Com o objetivo de estudar a progressão natural da sífilis, investigadores acompanharam 399 homens, membros de uma comunidade negra, rural e pobre, que acreditavam estar a receber cuidados de saúde gratuitos por parte do Governo. O objetivo da investigação era observar os efeitos da sífilis não tratada, pelo que os investigadores acompanharam estes homens durante 40 anos sem os curarem, mesmo depois de a penicilina se ter afirmado como tratamento para a doença em 1948.

Acresce a estes dois casos a denúncia feita, em 1964, pelo anestesista norte-americano Henry Beecher de 22 casos de investigação médica abusiva, nomeadamente situações de injeção de células cancerosas em idosos hospitalizados para se estudar a resposta imunológica ou a injeção do vírus da hepatite em centenas de crianças com deficiência mental que estavam internadas em lares sociais.

As sucessivas polémicas levaram à criação da National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, que redigiu o Relatório de Belmont (1979) com o objetivo de identificar os princípios éticos básicos que devem regular a conduta da investigação biomédica. O relatório identificava três princípios fundamentais, que seriam aprofundados por dois dos relatores, James Childress e Tom Beauchamp, e transformados nos quatro princípios que dão forma à teoria principalista: o princípio do respeito pela autonomia da pessoa humana, o princípio da beneficência, o princípio da não-maleficência e o princípio da justiça.

Embora tenham surgido outras teorias, com pendor mais consequencialista, como alternativas ao principalismo, esta é ainda a principal teoria da Bioética e aquela que inspira os documentos mais relevantes que, entretanto, foram adotados: a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (mais conhecida como Convenção de Oviedo) e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (Declaração da Unesco). Ambos os documentos assentam no respeito pela autonomia do indivíduo através do princípio do consentimento e no respeito pela dignidade humana com a recusa da lógica utilitarista: “O interesse e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da sociedade ou da ciência.”

A reflexão bioética inaugura, neste sentido, um novo paradigma na medicina. Afastamo-nos do paternalismo médico, em que o médico é entendido como autoridade inquestionável, e passamos para um paradigma de autonomia individual, em que cabe ao indivíduo, dotado de todas as informações relevantes, a decisão sobre as ações que dizem respeito ao seu corpo. E é a partir deste novo paradigma que são pensadas quase todas as questões bioéticas atuais, como o aborto, a eutanásia, a procriação medicamente assistida, a doação de órgãos, o plano de parto, a manipulação genética, etc.

4. O dilema da vacinação

Uma área em que o paradigma da autonomia tem claras implicações é precisamente a da vacinação: se as decisões de saúde passam a caber ao indivíduo, como respeito pela sua dignidade e autonomia, isso significa ter de lidar com a liberdade de escolha de não vacinação. E a maioria dos países ocidentais passou a deparar-se com níveis crescentes de decisão de não-vacinação, tornando-se esta temática numa área quente de reflexão bioética. Embora a vacinação obrigatória fosse uma solução defendida por alguns como forma de resolver o problema, os princípios bioéticos atuais deixavam pouca margem para a sua imposição. De facto, a mudança para um paradigma de autonomia em contexto democrático implica que as pessoas sejam convencidas à melhor decisão e não obrigadas a ela.

Essa tarefa de convencimento é particularmente difícil em tempos de descrédito científico (as razões para esse descrédito não cabem no presente texto), e colocou a arte da comunicação no centro do cuidado médico: o médico deve disponibilizar, de forma simples e clara, a informação relevante e necessária para que as pessoas possam tomar uma decisão informada, ao mesmo tempo que deve afastar “o receio talidomida”, respeitante à desconfiança quanto a efeitos adversos não devidamente ponderados.

No caso da vacina para o vírus SARS-CoV-2, isto não se tem verificado: por um lado, temos assistido a graves erros de comunicação por parte das autoridades de saúde, ora garantindo que as vacinas significarão “o regresso à normalidade”, ora afirmando que as regras de isolamento, máscara e distanciamento se têm de manter; por outro, o facto de as vacinas terem sido autorizadas para um uso de emergência e as dúvidas dos próprios cientistas e agentes de saúde afetam a confiança da população.

Essas posições céticas têm levado a que alguns governos optem por determinar a vacinação obrigatória de determinados grupos, o que gerou fortes protestos, nomeadamente em França. Mas a estratégia mais generalizada nos países ocidentais – que condiciona a fruição de determinados serviços e eventos sociais à prova de vacinação ou teste negativo – coloca-nos no limiar da aceitabilidade: se não há obrigatoriedade formal, mas temos constrangimentos sociais fortíssimos à sua toma, podemos considerar que está a ser respeitada a autonomia individual? Quando somos coagidos a uma decisão, podemos falar ainda em “consentimento livre”?

Esta tornar-se-á, provavelmente, uma das tristes ironias da história dos nossos dias: há menos de dois anos, uma das obsessões do Ocidente prendia-se com o sistema de crédito social chinês, que condicionaria a possibilidade de os cidadãos chineses adquirirem certos bens ou usufruírem de certos serviços à validação de um comportamento politicamente adequado; menos de dois anos depois, enveredamos inconscientemente numa ideia equivalente de crédito sanitário.

Notemos que o nosso objetivo não é ponderar a colisão entre os valores da autonomia e da solidariedade comunitária. Importa-nos apenas refletir sobre os possíveis efeitos pandémicos no paradigma da autonomia. É verdade que podemos convocar argumentos válidos e legítimos para aquelas estratégias políticas, mas respeitarão elas os princípios éticos que se foram afirmando nas últimas décadas e que compreendemos como conquistas civilizacionais?

5. A vacinação de menores

No caso da vacinação de menores para o vírus SARS-CoV-2, a complexidade agrava-se. Embora a maioridade dependa dos 18 anos, entende-se que o consentimento para atos médicos pode ser dado a partir dos 16 anos, quando se pressupõe a maturidade necessária para a tomada de decisão (saber se se trata de um consentimento informado é outra questão). Mas abaixo dessa fronteira, tudo se torna mais nebuloso. O médico deve considerar a maturidade dos menores para a tomada de decisão, mas a decisão final caberá aos pais ou, em última instância, à sociedade. Convém, portanto, ponderar os argumentos que são usados e verificar se este ato médico respeita os restantes princípios bioéticos.

E é aqui que as dúvidas se tornam maiores do que as certezas – como nos apercebemos pelas constantes posições contraditórias apresentadas publicamente pela própria comunidade médica. Se considerarmos que a finalidade de uma vacina é reduzir morbidade e mortalidade no tomador (com a consequência de proteção comunitária), é difícil afirmar que o princípio da beneficência esteja a ser respeitado na medida em que a possibilidade de menores saudáveis serem afetados gravemente pela Covid-19 é extremamente baixa. Em segundo lugar, os possíveis efeitos prejudiciais da vacina (miocardite e pericardite, como tem sido discutido, e as consequências a longo prazo que são desconhecidas) têm sido invocados por alguns especialistas para afirmar que o princípio da não-maleficência também não se encontra respeitado. Por seu turno, o princípio da justiça pode convocar reflexões de outra natureza: faz sentido vacinar um grupo que não é de risco quando os países mais pobres ainda se queixam da falta de vacinas?

Mas o problema ético central da vacinação de menores reside na argumentação que mais se faz sentir, em especial por parte de atores políticos: o apelo para que os menores sejam vacinados para que, primeiramente, não transmitam a doença aos mais velhos e, depois, possamos todos regressar mais rapidamente à normalidade (saber se a vacina permite este objetivo é, mais uma vez, outra questão). Esta argumentação confronta-nos com o dilema fundamental da bioética: é legítimo usar os menores para beneficiar a maioria da sociedade? É que os menores saudáveis não estariam a ser vacinados para sua proteção, mas para produzirem consequências específicas: a proteção de outros e o bem-estar de todos, transformando o efeito instrumental da vacinação (a proteção do grupo) em objetivo único.

O espírito kantiano que enforma os princípios da bioética recusa liminarmente esta lógica justificativa: as crianças estariam a ser usadas como meio para um fim e veriam, nessa mesma medida, a sua dignidade desrespeitada. Notemos que não se trata aqui de uma questão técnica de possibilidade de vacinação. Trata-se, antes, de uma questão ética: de ponderarmos os limites do que devemos fazer apesar do que podemos fazer.

A história da medicina está repleta de situações em que o proveito do maior número prevaleceu sobre os direitos de um grupo e foram esses casos que levaram a que a Bioética se afirmasse como área de estudo específica. Será a atual pandemia responsável por pôr em causa todo este caminho?