Portugal tem um novo governo. Há uma natural expetativa sobre o que vai fazer, por exemplo, no campo da defesa e da ação externa, com o regresso da guerra em grande escala à Europa. A propósito, no final da semana passada, o Almirante Gouveia e Melo relançou o debate sobre algum tipo de Serviço Militar Obrigatório (SMO). Fará sentido? Será necessário? Quais deviam ser as prioridades do novo governo neste campo?

Um Mundo mais perigoso

Estamos a viver num Mundo mais perigoso. A principal obra de referência sobre conflitos armados a nível global refere um aumento de 28% no número de conflitos só no último ano. Neste contexto global, algum medo não é alarmismo: é realismo.

É verdade que o medo pode ser perigoso se se transformar num pânico paralisante. Mas o medo não apareceu por acaso, é uma resposta evolutiva para garantir a sobrevivência da espécie. Sem o prudente temor dos nossos predadores e inimigos não teríamos chegado muito longe, desde logo, na inovação tecnológica e organizacional destinada a tornar-nos mais fortes e seguros.

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Foi também, em boa parte, como resposta ao medo da subversão e da invasão do comunismo soviético de Estaline e dos seus sucessores que surgiu a Organização de Cooperação Económica Europeia, em 1948, para administrar o Plano Marshall de reconstrução da Europa, ou a Aliança Atlântica, no ano seguinte. A NATO, criada em Abril de 1949, celebrou esta semana 75 anos, confirmando o seu estatuto como a aliança multilateral de defesa mais durável e mais bem-sucedida da história. Mesmo o generoso e universal Estado providência criado na Europa Ocidental, ou as Comunidades Económicas Europeias, começando com a CECA, em 1952, foram em parte uma resposta ao medo do expansionismo soviético. Entre os pais fundadores da NATO e da CEE/UE devíamos incluir Estaline.

Hoje seria um erro ignorar a ameaça que Putin e outros ditadores representam, ao pretender tornar o Mundo mais seguro para autocracias determinadas a impor a sua vontade pela força.

Portugal está longe, mas não seguro, e deve resistir à continentalização

A Rússia e a Ucrânia estão longe. Não por acaso os Estados que voltaram a usar novas modalidades mais seletivas de SMO estão todos no Norte e no Leste da Europa. É normal, pois querem dissuadir uma invasão do seu território. Mas em Portugal devemos ter a noção de que a desestabilização do resto da Europa não deixaria de ter um enorme impacto nos nossos interesses, desde logo, económicos. Por isso devemos mostrar solidariedade também por interesse próprio na contenção e derrota do expansionismo russo.

Por outro lado, na resposta a esta real ameaça russa Portugal deve resistir a uma excessiva continentalização geoestratégica e a um foco exclusivo no Leste. O que torna relevante uma Rússia mais agressiva é que essa ameaça não é apenas terrestre, nem está localizada apenas no Leste. Só no último ano foram pelo menos 40 as passagens de navios e aviões de guerra russos em águas próximas das portuguesas. A Rússia tem uma estratégia de desestabilização em África e no Médio Oriente, ou seja, no flanco Sul mais próximo do nosso país. E usa e abusa de desinformação, ciberataques e outros ataques híbridos.

Isto significa que o principal contributo de Portugal para lidar com a principal ameaça à segurança e à liberdade da Europa deverá ser na dimensão da defesa aeronaval e com forças projetáveis. Ou seja, precisamos sobretudo de robustecer as nossas capacidades em dimensões chave – defesa costeira, defesa antiaérea, antissubmarina, drones armados (preferencialmente a Super-Tucanos), aviões de nova geração – mais do que de uma revisão radical das nossas prioridades geoestratégicas. Não faz sentido pensar que devemos passar a ter massas de tanques e de soldados para projetar com enorme dificuldade e custo para o outro extremo da Europa. Como prioridade devemos, antes, contribuir para defender a ponte vital entre a Europa e o seu aliado indispensável no outro lado do Atlântico, os EUA. Depois, devemos contribuir para a gestão de crises e da segurança marítima no flanco Sul. Se isso se justificar, podemos usar algumas dessas forças projetáveis mais para Leste do que para Sul.

Não faz sentido regressar ao velho SMO

Voltar ao velho SMO não faz sentido para os desafios de segurança que agora enfrentamos. Ele acabou por boas razões. Dos 32 Estados Membros da NATO, só 4 mantiveram o SMO, e mesmo aí com reformas, e só mais 3 regressaram a um modelo de SMO também muito alterado. Os EUA, por exemplo, não têm SMO desde 1973 e a Grã-Bretanha desde 1957. Outros estão a ponderar rever as regras de recrutamento, mas não para regressar a um velho SMO que recrutava cegamente dezenas e até centenas de milhares de jovens que depois era preciso aquartelar, fardar, armar e municiar, instruir e pagar. Esses jovens poucos meses ficavam ao serviço, depois de poucos meses de instrução. E não eram enviados para missões em zonas de guerra fora de território nacional.

Temos problemas de recrutamento e, sobretudo, de retenção de efetivos de qualidade. Nós e toda a Europa. A Suécia com SMO tem 14.000 efetivos, bem menos do que Portugal. A rica Holanda tem um deficit de 9000 efetivos. O problema não é certamente a falta de recursos nesses países, dos mais prósperos da Europa, e dos que mais têm reforçado o seu investimento em defesa. O problema é demográfico e de costumes. A Europa está mais velha. A Europa está mais individualista e consumista. Sobretudo, durante muito tempo a utilidade das Forças Armadas para a Europa era pouco evidente e nada debatida.

Não me oponho a que, a prazo, se pense num sistema de recrutamento do tipo da Suécia. Desde logo universal – ou seja, igual para homens e mulheres. Depois, formalmente obrigatório, mas seletivo, e em que a motivação e a disponibilidade dos recrutas é um critério fundamental. Mas porque não começar por pensar nas modalidades e custos de um modelo voluntário de treino básico de defesa territorial, em números que sejam geríveis? Seria um passo para se construir um consenso amplo indispensável para qualquer mudança futura.

O discurso catastrofista e o risco da contabilidade corporativa

Alguns pensam defender as Forças Armadas dizendo que nada funciona. Além de falso, é evidentemente desmotivador para futuros contratados, voluntários ou recrutados. Essas são algumas das mesmas vozes que agora vêm dizer que devemos obrigar os jovens a servir nestas forças sem qualquer préstimo. E espantam-se que estes não se mostrem entusiasmados?

Por fim, há a pressão para gastar mais em defesa. Parece-me bem. Há anos que o escrevo. Mas essa pressão vem muitas vezes associada a alegações de que Portugal faz contabilidade criativa no seu reporte à NATO. Esse é um argumento que me parece ser feito em nome de uma “contabilidade corporativa” segundo a qual só deveriam contar os recursos controlados pela “tropa”, e não outros investimentos de outras áreas governativas. Isso não faz nenhum sentido num conceito devidamente holístico de defesa nacional. Também não faz sentido Portugal ser mais papista do que o papa. As regras de reporte à NATO, que existem desde a década de 1950, fazem mais sentido umas do que outras, mas são iguais para todos os Estados Membros. Regras que são aliás explicitadas logo na introdução do restivo relatório. Incluem, por exemplo pensões, e se calhar não deviam. Incluem também, e muito bem, uma pequena parte do orçamento de forças como a GNR que diz respeito àquelas unidades especiais com treino militar e que são projetáveis, como efetivamente aconteceu do Iraque até Timor-Leste. Qualquer revisão dessas regras deverá ser para todos, nunca unilateral.

Em suma, Portugal tem aumentado mesmo o seu investimento em defesa, embora a partir de um nível historicamente muito baixo por toda a Europa e mais devagar do que gostaria. Falar hoje de desinvestimento em defesa é má fé. Portugal passou de 2,4 mil milhões de euros de investimento em defesa em 2014 – apesar de todos os cortes necessários num período de austeridade – para 3,9 mil milhões em 2023. Mais, aumentou especialmente o seu esforço de investimento em novo equipamento militar que passou de 8% do orçamento em 2014 para 22% em 2023. Isso traduziu-se, por exemplo, numa modernização de fundo das nossas fragatas, num novo navio multifunções em construção, ou na entrega de novos aviões de transporte KC-390, em parte fabricados em Portugal.

Portanto, o meu principal temor é mesmo que Portugal torre recursos numa contabilidade corporativa de subsídios, suplementos e salários, desinvestindo no reequipamento, e pondo em causa um dos dois objetivos com que nos comprometemos em Gales em 2014, um dos quais até já alcançámos: 2% do PIB (estamos em 1,5%); e 20% em investimento (já estamos nos 22%). É preciso mais um esforço de aumento do investimento em defesa. Mas também precisamos de menos nostalgia e de mais seriedade.

Sobre a política externa voltaremos a falar. Mas a prioridade já anunciada a Espanha na primeira visita oficial ao exterior do Primeiro-Ministro parece-me um bom sinal de que o novo governo se irá reger pelos interesses permanentes do Estado e não por preferências ideológicas, que têm o seu lugar, mas não na diplomacia.