Os advogados dos marinheiros do NRP Mondego que desobedeceram a uma ordem têm defendido publicamente que não há um caso Mondego, o que há é um caso Gouveia e Melo. Os advogados de defesa têm um papel indispensável em qualquer sistema de justiça minimamente justo, mas nele não se inclui censurar o debate sobre um caso de manifesto relevância, nacional e até internacional, aliás primeiro conhecido publicamente na versão dos seus clientes. Rejeitam, bem, uma condenação pública dos seus clientes. Entram em manifesta contradição procurando ativamente promover a condenação pública do Chefe da Marinha. Dito isto, será que há realmente um caso Gouveia e Melo? Talvez. Mas não tem nada a ver com a sua atuação no caso bem mais sério do Mondego.

Navios novos não garantem menos problemas

Percebo que se ache que há uma solução simples para todos estes problemas: Portugal ter mais dinheiro para comprar mais navios novos. Mas é uma ideia errada. Falar de uma compra em segunda mão como sendo sucata é discurso de novo-rico, mais adequado a um país como o Qatar. Sim, o Mondego entrou ao serviço na Dinamarca, em 1992, e foi comprado por Portugal em 2016. Mas recordo que a Lituânia, para melhor se defender no Báltico da ameaça naval russa, comprou na mesma altura os mesmos navios dinamarqueses em segunda mão. Os EUA ainda agora enviaram para exercícios no Mar da Coreia, um porta-aviões com 47 anos o USS Nimitz, e embora a sua substituição esteja prevista para 2026, tem-se debatido se deverá ser adiada.

Houve um desenvolvimento no caso do NRP Mondego: abortou uma missão por falta de combustível. Isso trouxe algo de novo? Logo houve quem se tivesse apressado a concluir que aí estava a prova de que o navio era sucata e que a pública desobediência a uma ordem legítima de alguns dos seus marinheiros seria justificada. Sobre esse novo caso ficámos a saber mais detalhes esta semana. Segundo a informação oficial, o baixo nível de combustível foi devidamente registado e sinalizado, e não se tratou, portanto, duma avaria técnica. Podemos ser tentados a pensar que não há coincidências, e que o alegado erro humano seria uma ação deliberada para alimentar a controvérsia pública. Se se provasse que foi um ato deliberado configuraria uma sabotagem muito grave. Mas há realmente coincidências e erros humanos, como também há avarias, em todos os navios. Eu continuo a querer acreditar que a grande maioria dos marinheiros e soldados portugueses estão empenhados em levar a cabo as suas missões mesmo que, como em tantos outros setores, nem sempre em condições ideais. O que ficou claro com este novo episódio é que, mesmo no cenário de um problema a bordo, o Mondego é um navio suficientemente resiliente para não ficar automaticamente em risco nem colocar em perigo a tripulação.

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Com navios mais velhos precisamos de mais dinheiro para manutenção? Sim. Mas mais dinheiro não garante mágica e automaticamente maior operacionalidade. Os EUA, o país que mais gasta em Defesa no Mundo, têm tido sérios problemas de manutenção na sua Marinha. E também tem tido muitos problemas com novas linhas de navios de guerra. É simplista e errada a ideia de que navios novos significam automaticamente mais operacionalidade e menos avarias. Pelo contrário, é frequente plataformas novas e muito avançadas terem problemas sérios e frequentes avarias, limitando o seu uso operacional nos seus anos iniciais. Por muitos testes que se tenha feito, o emprego real de meios novos por vezes revela problemas inesperados. Em todo o caso, não pode é haver qualquer dúvida de que cabe ao parlamento eleito por todos decidir onde e como gastar o dinheiro dos impostos de todos, e não a qualquer pronunciamento militar, por muito justificado que até pudesse ser. O dever de obediência nas Forças Armadas não é necessário para ordens com que se concorda, mas precisamente para aquelas de que se discorda. Ele é um condição indispensável de efetiva tutela democrática civil sobre os militares. É isto que torna o caso Mondego tão sério.

O caso Gouveia e Melo presidente?

Não há nenhum caso Gouveia e Melo? Na gestão do caso do Mondego parece-me que a sua posição tem sido correta, transmitindo mensagens certas e indispensáveis para o país e para a Marinha. Onde se poderá falar de um “casinho” é relativamente à especulação em torno duma eventual candidatura presidencial sua. E isso tem sido usado, aliás, para o atacar, nomeadamente na gestão do caso Mondego.

Para ser justo, a questão da sua eventual candidatura presidencial surgiu, não por iniciativa do almirante, mas como resultado duma avaliação pública muito positiva da sua eficaz coordenação do esforço de vacinação. O que levou a imprensa a, naturalmente, incluir o seu nome em sondagens sobre as futuras eleições presidenciais. Neste contexto, Gouveia e Melo foi mal aconselhado por aqueles que lhe terão dito o que devia declarar à imprensa: “não se deve dizer dessa água não beberei”.

Tenho dúvidas, confirmadas por vários casos recentes, inclusive o do Mondego, de que em Portugal estejam plenamente consolidadas regras básicas das relações civis-militares numa democracia e uma perceção adequada dos riscos de equívocos e confusões a esse respeito, seja entre alguns militares, seja entre muitos comentadores civis. Enquanto for assim é desaconselhável a candidatura de um militar à presidência, independente das qualidades pessoais de Gouveia e Melo.

Sobretudo, e independentemente disso, como bem veio recordar o Almirante Silva Ribeiro, anterior CEMGFA, numa democracia um oficial no ativo não pode alimentar quaisquer equívocos sobre um eventual papel político futuro. Gouveia e Melo, entretanto, até já tem dito o que sempre deveria ter dito: que está exclusivamente focado na chefia da Marinha. Mas temo que o génio esteja fora da lâmpada. Parece-me recomendável que o almirante faça pela Marinha e pelo seu importante projeto de modernização – de meios e de mentalidades – o sacrifício de desfazer equívocos sobre uma futura candidatura presidencial. Até pode ser que o consiga fazer num momento escolhido por ele e com suficiente arte para não fechar completamente a porta a essa possibilidade. Mas creio que é cada vez mais inadiável Gouveia e Melo fazer declarações inequívocas sobre este caso menor para poder exercer com o máximo de eficácia as suas funções atuais num momento tão importante para o futuro da Defesa nacional.