Um navio de bandeira portuguesa, MSC Aries, foi literalmente apanhado no meio deste confronto que arrisca incendiar todo o Médio Oriente. Pertence a um empresário israelita e foi ilegalmente apresado pela Guarda Revolucionária do Irão no estreito de Ormuz. O que podemos retirar daqui? Estamos a viver num Mundo mais perigoso. Nós não ficaremos imunes aos seus riscos, mesmo que o nosso país não seja palco ou alvo principal desta proliferação de conflitos. Devemos preparar-nos. Por fim, o risco de escalada do conflito entre o Irão e Israel é um bom exemplo de como muitas vezes a ação externa dos Estados é menos determinada pelo realismo estratégico e mais por preconceitos ideológicos e dinâmicas políticas internas.

O que vale uma bandeira?

Na navegação comercial atual – que continua a representar mais de 80% do comércio mundial de bens – uma bandeira vale pouco, exceto em termos de conveniência fiscal e regulatória. Por isso o topo da lista de países, formalmente, com as maiores frotas mercantes é ocupado por Estados que não são propriamente grandes potências económicas e marítimas: o Panamá, a Libéria, as Ilhas Marshall ou as Baamas. Portugal consegui reforçar a sua presença nesta lista por via da zona franca da Madeira e dos 5% de IRC e isenção de impostos das tripulações que oferece às grandes companhias transnacionais de navegação. Hoje mais de 90% dos navios “portugueses” estão baseados na Madeira, e o seu número quadruplicou na última década ultrapassando os 900. Melhor do que nada? Talvez. Mas está longe de significar que empresas portuguesas estejam a ganhar peso neste campo. Se calhar devíamos debater se daí advém vantagens económicas que compensem o risco.

É, em todo o caso, assim que funciona hoje em dia a navegação globalizada. Não é excecional que a ligação deste navio a Portugal se resuma à bandeira e ao local do seu registo. O navio pertence ao bilionário israelita Eyal Ofert que tem uma relação próxima com a maior companhia global de transporte de contentores, a Mediterranean Shipping Company liderada por uma família italiana e com sede na Suíça. A MSC operava este porta-contentores entre um porto nos Emirados e o principal porto da cidade de Bombaim na Índia. A maioria dos marinheiros mercantes vem hoje em dia de países pobres do Sul Global, neste caso são sobretudo indianos.

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O que deveria Portugal fazer?

Estou a defender que Portugal não tem qualquer responsabilidade pelo MSC Aries? Não. A nossa bandeira e o respeito pela lei internacional devem valer alguma coisa. Mas, objetivamente, a Índia ou até Israel, têm mais interesses em jogo no navio. E é evidente que o navio foi visado não pela sua ligação a Portugal ou à Índia, mas a Israel. O governo português reagiu bem, com alguma contenção, embora deixando clara a rejeição do apresamento ilegal de um navio civil e exigindo o seu fim. Não fazia sentido, começar por se avançar para uma guerra retórica pública com o Irão, que não teria eficácia e poderia ser contraproducente. A aposta deve ser, para já, em coordenar discretamente esforços e pressões sobre o Irão com outros países envolvidos. E, a par disso, usar a União Europeia para ameaçar com sanções direcionadas à ala naval da guarda pretoriana do regime ou às suas exportações e importações por via marítima. Tudo isso será bem mais credível e impactante do que qualquer ação unilateral portuguesa.

Uma resposta militar não faria evidentemente qualquer sentido. E não apenas pelas limitações das nossas capacidades militares. Os EUA, a maior potência militar do Mundo, estão a tentar evitar um choque militar com o Irão e a pressionar no mesmo sentido Israel, o seu aliado militarmente mais poderoso nesta região. A Índia tem meios navais muito significativos e também não optou por essa via. Se Israel atacar o Irão não será para libertar este navio, mas depois de um ataque iraniano sem precedentes ao seu território, embora de eficácia limitada. O Irão tem a enorme vantagem geoestratégia de poder ameaçar de forma credível, fácil e barata, a partir de múltiplas bases no seu território, o estreito de Ormuz, um ponto de passagem obrigatório de toda a navegação que entra ou sai do Golfo Pérsico-Arábico.

Portugal até pode, se a situação não se resolver, optar por participar mais fortemente nas missões navais europeias na região. Mas tal só será significativo se corresponder a uma viragem mais ampla da postura dos países europeus. Tenho defendido aqui que todos os países europeus estão em negação em relação à escala dos riscos para a sua segurança marítima e económica com estes ataques, sobretudo no estreito de Áden e agora de Ormuz. É importante, no entanto, ter a noção que mesmo uma desejável presença militar naval mais forte da União Europeia nesta região, em coordenação com os EUA, Grã-Bretanha e outros aliados, tornaria mais difícil a ação ilegal contra a navegação civil sobretudo dos piratas Houthis e também do Irão, mas em nenhum dos casos seria possível evitar a 100% este tipo de ataques. É provável que desfecho do caso dependa menos da eficácia da ação de Portugal do que da escalada no confronto entre Israel e o Irão.

O que querem o Irão e Israel?

O Irão é governado desde 1979 por um brutal regime teocrático, violentamente repressivo internamente, e violentamente revisionista a nível regional e global. Teerão ignora a lei internacional, exceto quando a tenta usar instrumentalmente contra algum dos seus inimigos. A sua grande prioridade estratégica é tornar-se a potência hegemónica no Médio Oriente e até no Mundo Islâmico, eliminando os EUA e Israel da região. O problema é que Teerão por vezes parece esquecer que ataques convencionais e diretos, nomeadamente este último contra Israel, têm o efeito exatamente contrário. Um Irão tão agressivo assusta os regimes árabes conservadores e força os EUA a reforçar a sua presença militar ativa na região. Foi sobretudo o resultado da necessidade da ala dura do regime dar uma prova de força e responder às críticas de aliados radicais na região pela falta de um apoio iraniano mais robusto ao Hamas.

Israel tem sido politicamente dominado nos últimos vinte cinco anos por uma direita cada vez mais dura e militarista, liderada por Benjamin Netanyahu. O seu grande objetivo estratégico tem sido isolar o Irão e a liderança palestiniana, aproximando-se dos regimes árabes conservadores e mantendo os EUA alinhado com Israel. Ora, ações militares excessivas em Gaza ou uma escalada militar com o Irão que pode escalar para uma guerra regional arriscam-se a colocar essas prioridades estratégicas em questão. Mas Netanyahu para sobreviver politicamente tem de mostrar aos falcões no seu governo que não se deixa condicionar excessivamente por pressões externas. Veremos o que prevalece, a estratégia de longo prazo ou táticas políticas de curto prazo.

Rever a estratégia nacional

Este Mundo mais perigoso torna urgente que Portugal avance com uma revisão estratégica. Precisamos de um novo Conceito Estratégico de Defesa Nacional. O que está em vigor data de 2013. Foi deixado um documento preparatório pelo anterior governo com base no trabalho de um grupo muito variado (e de que fiz parte), eficazmente coordenado por Nuno Severiano Teixeira. O programa do novo governo prevê esta revisão, incorporando um contributo do programa do PS, o que mostra que há um amplo consenso a este respeito. Espero que não se demore. Neste contexto regional e global de grandes mudanças e fortes riscos é também urgente a criação de uma célula permanente de planeamento estratégico de crise no governo, que produza cenários realistas, identifique ameaças e prioridades, coordene uma eficaz implementação, garanta uma adequação mínima de meios sempre limitados. Uma coisa é certa, neste admirável Mundo novo, Portugal precisa mais do que nunca de ser um participante ativo e credível no seu sistema de alianças, sobretudo na NATO e na Europa da Defesa, assim elas durem.