Chamei aqui a atenção para que a questão do NRP Mondego não era apenas uma questão de disciplina e eficácia militar, ou de segurança nacional e credibilidade externa, era mesmo uma questão de democracia. Cabe-me agradecer à Associação Nacional de Sargentos pelo seu comunicado de ontem por me ajudar a demonstrar como nesta questão está realmente em causa o princípio da tutela democrática sobre as Forças Armadas. Quando é assim não há outras questões mais relevantes, não para um defensor da democracia.

Grave apelo da Associação Nacional de Sargentos aos “verdadeiros” portugueses

O comunicado divulgado a 22 de março pela Associação Nacional de Sargentos mostra que, apesar de fazerem parte da respetiva rede europeia, não fazem ideia do que seja uma linguagem adequada ou os limites de um debate normal sobre questões de defesa numa democracia na Europa. Fazem referência à Constituição, mas não parecem perceber que nos termos da mesma só há uma forma legal e legítima de aferir da vontade política do povo, através de eleições e das instituições daí resultantes.

Procuram desqualificar e condicionar os que exprimem opiniões diferentes das deles, falando do que tem sido “bolsado [sic] por uma série de ‘comentadeiros’, que da coisa militar nada sabem, e da naval muito menos.” Além da cómica má-educação, o que fica de sério desta posição é que a ANS parece achar que cabe aos militares e às suas associações determinar quem pode ou não falar sobre temas de defesa e em que termos. Será assim numa ditadura militar, mas num regime democrático não há temas tabus ou reservados.

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Mais, o texto da ANS parece fazer um apelo tácito a que seja repetido por outros a desobediência destes poucos sargentos e marinheiros que se recusaram cumprir uma missão vital para a segurança nacional e a credibilidade internacional do país em tempo de guerra. Ou seja, se amotinaram no sentido comum do termo ao recusarem cumprir ordens legítimas. A ANS fala deles como “arautos de um grito de alerta” a quem “todos os verdadeiros Camaradas, verdadeiros Militares e verdadeiros Portugueses deverão estar sinceramente agradecidos!” Como se coubesse a uma associação militar dividir portugueses e militares em falsos e verdadeiros! Para quem tenha dúvida sobre quem seria o alvo desta verdadeira turba amotinada, ele é apontado no documento: a “Comissão Liquidatária das Forças Armadas (tutela militar e tutela política) [sic], a trabalhar há décadas”. Ou seja, sucessivos presidentes, parlamentos, governos democraticamente eleitos e os comandos militares por eles legalmente nomeados. Esta é uma linguagem típica do populismo autoritário no seu apelo ao “verdadeiro” povo e na rejeição da legitimidade das instituições democráticas.

As associações profissionais podem ter um papel importante na gestão da condição militar. Mas exigisse-lhe especial responsabilidade dada a necessidade de não ficar nunca em dúvida a tutela democrática sobre as Forças Armadas. Os sargentos são um dos pilares da instituição militar. São indispensáveis na ligação entre escalões superiores e os soldados e marinheiros a quem cabe efetivamente cumprir as missões. É muito grave que uma associação de sargentos assuma posições e use linguagem deste tipo. O melhor que podemos esperar é que ela não seja realmente representativa, e este texto não seja para levar a sério, não passando de uma espécie de irresponsável desabafo de uns quantos. No que me diz respeito, devo ser sincero, o texto até me ajuda a validar a tese que estou a desenvolver num estudo académico sobre relações civis-militares em Portugal e no Brasil: os dois países estão longe de ter consolidado na mentalidade de alguns militares as regras normais da tutela democrática sobre as Forças Armadas.

A tutela democrática sobre as Forças Armadas não é negociável

Não vi nenhum comentador ou analista apelar ao saneamento sumário e sem julgamento deste ou daquele marinheiro, como no tempo do PREC. Aliás este caso de manifesto interesse nacional foi conhecido porque a versão do que se passou dos marinheiros que inviabilizaram uma missão foi tornada pública antes de qualquer outra. Responsabilidades, percursos e atenuantes individuais devem ser devidamente apurados e ajuizados nos termos da lei. Sim, marinheiros e soldados muitas vezes cumprem missões em condições que estão longe de ser ideais, e estão muito tempo deslocados e embarcados. Isso merece o nosso reconhecimento. Há muito que defendo que é necessário ter mais recursos na Defesa. Mas ninguém trabalha em condições ideais em Portugal e não temos Forças Armadas para lidar com situações fáceis. Nada disto me impede de insistir num princípio fundamental e inegociável: nas Forças Armadas só não se obedece a ordens ilegítimas ou criminosas. Este não é um princípio que possa ser questionado porque um navio comprado em 2016 tem umas avarias. Este princípio não pode ser posto em causa porque não se concorda com o nível de investimento em defesa ou com o nível de remuneração dos militares. O lugar destas na hierarquia de prioridades nacionais e em termos de despesa pública é algo que cabe às autoridades civis eleitas fixar.

Não é preciso disciplina ou hierarquia quando se está de acordo com uma ordem, com uma missão, com os meios disponíveis. A disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas existem precisamente para lidar com eficácia com situações muito difíceis, de elevado risco, de guerra. Sobretudo, a disciplina militar não é negociável porque ela garante que numa democracia não há dúvidas sobre a tutela última do poder civil eleito sobre os militares armados por todos nós. Nos locais e nos termos próprios os militares podem manifestar discordância com uma missão. Também podem chamar a atenção para a relação necessária entre meios adequados e a execução eficaz duma missão. Mas não podem recusar o cumprimento duma ordem legítima. E sim, eu sei que houve o 25 de abril de 1974. Golpes e pronunciamentos são mesmo um dos temas do meu trabalho atual. Mas é mesmo preciso recordar que o 25 de abril foi um golpe para derrubar um regime ditatorial instalado por outro golpe militar? É mesmo necessário deixar claro que não se pode comparar o que não é comparável? Vivemos numa democracia, quem quer mais despesa em defesa pode fazer como eu, escrever nos jornais e votar em conformidade. Democracia e sovietes de marinheiros são duas opções incompatíveis, temos de escolher, e para mim é uma escolha fácil.