À data em que escrevo esta crónica, o mundo está suspenso da decisão de Putin de invadir ou não a Ucrânia. A questão ucraniana é complexa, tem as suas razões diluídas no tempo e as consequências de decisões dos vários intervenientes vão necessariamente ter impactos e ramificações que são, muitas delas, difíceis de antecipar.

Qualquer posição que procura racionalizar as várias facetas de um problema complexo corre o risco de ser polémica e sujeita a críticas. Enquanto cronista, assumo o ónus e a responsabilidade das minhas posições, na certeza que mais vale ser assertivo – mesmo que polémico –, contribuindo para o debate, do que me esvaziar em análises redondas.

Muitos portugueses não saberão, mas a Ucrânia é o maior país europeu (se assumirmos apenas os países que têm o seu território integralmente na Europa). A Ucrânia é maior que a França, e tem quase o dobro da área da Alemanha. A Ucrânia partilha fronteiras com sete países, desde logo com a Rússia, cuja fronteira se estende por mais de 1500 quilómetros. Mas não apenas: a Ucrânia é a antecâmara da União Europeia, já que faz fronteira com a Polónia, Eslováquia, Hungria e Roménia (além da Bielorrússia e Moldávia). A Ucrânia tem ainda uma posição relevante no controlo do Mar Negro, com a península da Crimeia a estender-se até ao estreito de Kerch, que o liga ao norte do mar de Azov. A Ucrânia tem acesso ao Mar de Azov a sudeste, e uma população que rondará os 40 milhões de habitantes.

O que leva, então, a que a Ucrânia tenha uma importância tão fulcral para a Rússia, e seja fonte de preocupações para o mundo ocidental?

Com o fim da guerra-fria, o mundo assistiu a uma “arrumação” que empurrou vários países do antigo Leste europeu para a esfera de influência europeia ocidental. A expansão da União Europeia e da própria NATO fez-se ao ponto de, hoje, incluir Estados como a Polónia, Eslováquia, Hungria ou Roménia. A Ucrânia, por seu lado, tem a sua população dividida entre os que gostariam de se aproximar da União Europeia e da NATO, e as populações pró-russas, sobretudo as que residem nas zonas que, geográfica e historicamente, estão mais próximas de Moscovo. A Ucrânia tem funcionado, assim, como a “zona-tampão”, entre uma NATO em expansão a leste e uma Rússia que dispensaria ter de dividir fronteiras com Estados da Aliança Atlântica.

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A Ucrânia tem, ainda, uma importância significativa para a Rússia, pelo acesso que lhe dá ao Mar Negro (e, por essa via, ao Mediterrâneo). A Península da Crimeia foi durante séculos território russo, tendo sido oferecida à Ucrânia em 1954 por Nikita Kruschev. Desde o fim da Guerra-Fria que a Rússia sentiu na pele o erro histórico que tal gesto de “boa-vontade” traduziu para os seus interesses, tendo encetado nos anos seguintes várias diligências para recuperar o controlo de uma posição que lhe é estratégica.

Em 1997, o regime ucraniano autorizou os russos a instalarem-se no Porto de Sebastopol, num contrato que é válido até 2042. Em troca, Kiev beneficia desde então de um “desconto” de 30% no preço do gás russo, essencial para um país dependente do ponto de vista energético. Não obstante o acordo ter permitido manter em Sebastopol a base da frota naval russa, Moscovo optou por, em 2014, apoiar as forças separatistas da Crimeia, na sequência da destituição do até então presidente ucraniano pró-russo, Viktor Ianukovitch. Na verdade, e apesar de a Crimeia gozar, desde 1992, de um estatuto de autonomia, com Constituição, governo e parlamento próprios, tal não foi suficiente para travar as tensões e aspirações separatistas locais. Na sequência de um tortuoso (e contestado) processo referendário, a Crimeia viu a sua anexação à Rússia aprovada nos órgãos próprios da sua República Autónoma, operando a respetiva secessão da Ucrânia. Pela mesma altura, as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, situadas igualmente no sudeste da Ucrânia, ensaiaram uma tentativa idêntica à da Crimeia, mas a atuação de Kiev e a vontade de Putin (no sentido de não ir tão longe no desafio à comunidade internacional), culminaram nos Acordos de Minsk, por via dos quais ficou assente uma maior autonomia para as ditas Repúblicas Populares, mas no quadro da soberania ucraniana. Ora, são estes Acordos de Minsk que Putin se prepara para violar, reconhecendo a independência das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk.

A Europa e, em particular os países que estão mais afastados do eixo do Leste, como o caso de Portugal, não têm interesse nesta excessiva tentativa de “clarificação” da questão ucraniana. Mesmo os países da União Europeia que mantêm fronteiras com a Ucrânia ficam mais protegidos por uma Ucrânia que se mantenha fora da NATO e do domínio russo, que funcione, dada a sua extensão, como válvula de escape face a Moscovo. A minha posição seria necessariamente distinta se a governação ucraniana tivesse, desde 2014, dado sinais de melhoria relevantes nos seus índices de boa governação, em prol do muito sacrificado povo ucraniano. Ocorre, porém, que a Ucrânia não tem uma governação que mereça, da parte da Europa, reconhecimento de boas práticas, oscilando nas últimas décadas entre ordeiros líderes pró-russos e cleptocratas que encontram na oposição a Putin um bom modo de vida e uma narrativa simpática para justificar o seu completo alheamento do que se espera de um Estado democrático. Aspirar a que a Ucrânia gravite na esfera ocidental é um excesso de zelo que dificilmente a Rússia estará disposta a aceitar, pondo em causa o poder de Putin, empurrando-o para a necessidade de exibir poder. A Europa e a NATO fizeram uma ampla expansão até aos limites do que poderia ser tolerável sem desorganizar a nova ordem mundial emergente da Guerra-Fria.

É fundamental para a Europa manter um certo status quo face à Rússia e à Ucrânia, que exige uma diminuição significativa das tensões regionais e uma certa ambiguidade diplomática que não é compatível com radicalizações que coloquem o líder russo numa encruzilhada onde, qualquer que seja a decisão tomada, venha a ser visto como estando em perda. A Europa não tem nem independência energética nem ciber-resiliência para iniciar um processo de sanções económicas à Rússia, nem à saída de uma crise pandémica o mundo necessita de uma escalada de guerra.

A supremacia não se enuncia, pratica-se, e deve ser expressão de uma capacidade real que, neste momento, não está ao alcance da Europa. Não obstante os meritórios esforços de Macron para fazer uma quadratura do círculo suficientemente ampla para permitir que Putin não saia diplomaticamente derrotado num cenário em que opte pela não intervenção, parece claro que a receita de 2014 será agora usada para fazer a expansão para as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk: serão estas anexações territoriais o preço a pagar para evitar uma ação militar russa na Ucrânia. Pode hoje o mundo e a Europa acenar com ameaças de sanções económicas, que rapidamente se diluirão no desejo de ambiguidade essencial para que o nosso modo de vida não seja posto em causa (algo que depende do gás russo e da ausência de ataques cibernéticos).

Espero que haja engenho e arte para evitar que Putin opte por uma guerra que nem a si beneficia, e que a anexação de Donetsk e Lugansk – que me parecem inevitáveis – sejam o derradeiro sinal de que é necessário, a prazo, criar as condições para esvaziar o poderio russo, algo que ocorrerá num contexto de diminuição daquilo que suporta a Rússia e a sua cleptocracia: a exportação e exploração de matérias-primas, e a sua capacidade permanente de destabilizar as democracias com financiamentos partidários, desinformação e fabricação de fake news, e patrocínio de ataques cibernéticos de grande escala.