A política de descentralização político-administrativa em curso é uma oportunidade única para fazer a transição do estado-silo, hierárquico e vertical, para o estado-plataforma, policêntrico e colaborativo, sendo a economia das plataformas uma das formas mais visíveis da revolução tecno-digital. De um lado, os arranjos políticos convencionais do velho estado-silo, do outro, a desmaterialização e a digitalização das relações entre o estado e os cidadãos. Como é que estas duas velocidades coabitam e se conciliam? Vejamos alguns aspetos do problema.

Em primeiro lugar, e perante a Grande Transformação Tecno-Digital, não se trata, apenas, de converter um estado-informático num estado-digital, mas de converter uma cultura organizacional hierárquica e vertical, o estado-silo, numa cultura organizacional em rede colaborativa de cocriação e cogestão, o estado-plataforma. Com efeito, o que aqui sugerimos é uma alteração profunda no sistema de valores e na cultura política do estado-administração, sabendo nós que o estado central, o estado local e o estado social são os pilares essenciais do velho estado clientelar do século XX e, desde logo, as principais fontes de alimentação do sistema político-partidário ainda vigente.

Em segundo lugar, a revolução digital põe em causa não apenas a intermediação económica e comercial, mas, a prazo breve, também, a intermediação política e a fonte de legitimação democrática e representativa tal como nós a conhecemos nas sociedades ocidentais, razões mais do que suficientes para que o conservadorismo político-partidário tome as medidas defensivas e cautelares que se justificam nesta conjuntura de transição.

Em terceiro lugar, sabemos que, tendencialmente, as tecnologias digitais transformam tudo em produtos e serviços, ou seja, tudo está montado para gerar valor e ser convertido em negócio privado. As plataformas serão o dispositivo tecnológico dessa atomização-privatização-personalização das relações no próximo futuro. Não há, por enquanto, pensamento estruturado nem um guião para a ação no setor público, no que diz respeito às novas missões do Estado- administração, ao novo perímetro do estado e às zonas de interface entre o estado-administração e as plataformas de cidadãos em muitas áreas que relevam da modernização administrativa.

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Em quarto lugar, Portugal experimenta uma mistura explosiva que junta o envelhecimento da função pública, o congelamento das carreiras e das remunerações e uma quebra acentuada do investimento público em matéria de transformação digital. Por outro lado, usámos e abusámos de serviços em regime de outsourcing que, gradualmente, desclassificaram os serviços do estado-administração e os perfis profissionais da função pública, enquanto o lobbying corporativo ia capturando e esvaziando muitas funções técnicas do mesmo Estado-administração. Este facto significa, muito provavelmente, que não estarão reunidas as condições políticas e motivacionais para acolher uma nova cultura organizacional que põe em causa a lógica dos direitos adquiridos e a segurança das carreiras da função pública.

Em quinto lugar, quando se procede à transferência de atribuições e competências da administração central para as CCDR, as CIM e as Câmaras Municipais, a economia das plataformas abre uma via privilegiada de modernização no que diz respeito à política de descentralização e, de uma maneira geral, à configuração e gestão de serviços públicos. Um dos aspetos centrais da nova cultura organizacional é o grau de literacia digital da população para lidar com uma nova geração de serviços ao público. Não me refiro à manipulação de dispositivos inteligentes, reporto-me a questões de cultura digital que implicam a coprodução e cogestão de serviços ao público em vez de serviços públicos. Esta transição da cultura informática para a cultura digital é plena de consequências sobre o sistema de educação em geral, em especial no que diz respeito à revisão do sistema educativo e formativo.

Em sexto lugar, o acesso aos dados públicos cria uma grande zona de interface com a sociedade civil e abre uma via experimental para testar uma nova administração pública de participação interativa. Este é, porventura, o pretexto que faltava para fazer explodir o estado-plataforma, em múltiplos modelos e formatos de plataforma colaborativa e abrir o caminho para novas categorias e tipologias de bens e serviços, como, por exemplo, os comuns colaborativos em regime de coprodução e cogestão com o cidadão-utente. A associação entre a economia das plataformas e respetivas aplicações e a inteligência artificial nas suas diversas linguagens conduz-nos a um admirável mundo novo no qual o balcão do estado-silo passa para dentro do smartphone do estado-plataforma. Com esta simples enunciação estamos no coração de uma grande transformação tecnológica, aquela que nos conduz da sociedade do valor-trabalho para a sociedade do valor-data ou informação.

Nota Final

Aqui chegados, na sociedade digital onde já nos encontramos a nossa pegada digital estará por todo o lado e a nossa vida individual estará praticamente toda digitalizada, em inúmeras aplicações que fomos descarregando em modo mais ou menos descontrolado. Não sei se o leitor ficou assustado com esta minha afirmação, mas isto significa que, doravante, na sociedade digital o produto somos nós. Somos uma mercadoria trocada nos chamados mercados biface. Somos adquiridos gratuitamente através dos rastos que deixamos em muitas plataformas (a primeira face do mercado) e somos vendidos a terceiros, geralmente empresas e sociedades, depois de devidamente perfilados, e mediante o pagamento, por parte dessas empresas e sociedades, de uma comissão à plataforma que faz a respetiva intermediação (a segunda face do mercado). Quer dizer, tudo o que nós dizemos, fazemos, sentimos e experimentamos deixa um rasto e produz informação preciosa com muito sumo para as plataformas de intermediação. Depois de extraído, esse sumo converte-se num perfil personalizado de um consumidor/utente/utilizador e é este perfil personalizado que tem imenso valor para o universo mercantilista do capitalismo digital. Ou seja, numa extremidade, a multidão e a internet, na outra extremidade, o smartphone e o internauta. No meio, os operadores de telecomunicações, as plataformas digitais e as aplicações informáticas. Estaremos a falar da revolução digital na sociedade e na economia e a emergência de um denominado homo digitalis, por enquanto pertencente, ainda, ao domínio da espécie humana!!!