Em 1973, Arthur Schlesinger escreveu um livro no qual cristalizou o termo “A Presidência Imperial” para se referir ao aumento exponencial e descontrolado de poder que os presidentes Americanos estavam a ter desde os meados dos anos 60. Ao contrário do mito acerca da genialidade dos pais fundadores, hoje largamente desacreditado nos meios académicos e intelectuais da ciência política, a indefinição dos poderes da presidência de forma clara causou sempre enorme atrito entre os três ramos de poder. A noção de ‘Presidência Imperial’ apareceu no contexto da Guerra Fria e da necessidade de os presidentes tomarem decisões de política externa de forma rápida, eficiente e, em muitos casos, sem qualquer controlo por parte do Congresso ou dos tribunais. No pós-11 de Setembro, a guerra contra o terrorismo ressuscitou novamente esta discussão com o aumento dos poderes do executivo, nomeadamente através da legislação vertida no Patriot Act.

Esta semana, o Supremo Tribunal Americano tornou pública uma decisão histórica que terá consequências não só imprevisíveis, mas também de longa duração. No contexto dos processos judiciais contra Trump por causa da sua tentativa de interferência nos resultados das eleições de 2020, os advogados do ex-presidente do Estados Unidos decidiram litigar no Supremo Tribunal a existência de uma suposta imunidade devida a Trump por este ocupar o lugar de chefe do executivo no momento das suas acções. Apesar de haver uma expectativa que a decisão fosse favorável a Trump, não por quaisquer méritos intelectuais ou jurídicos mas pelo simples facto de uma boa parte dos juízes terem sido nomeados pelo antigo presidente, ninguém esperava a dimensão da decisão. Apesar de não estar pronto para analisar a decisão sob o ponto de vista técnico, as suas consequências políticas são relativamente simples de analisar. Depois da decisão de Trump v. United States, a jurisprudência constitucional Americana passa a considerar muito mais alargada a extensão das acções feitas pelo ocupante da Casa Branca que são susceptíveis de imunidade. De forma simples, praticamente qualquer acção que um presidente Americano faça passa a ser legal pelo simples facto de ser decidida pelo presidente. Na prática, o presidente passa a estar acima da lei.

É neste contexto institucional e político, que afigura grandes perigos para a democracia Americana e para o mundo, que temos Joe Biden a concorrer contra Donald Trump. Sejamos claros. Como já escrevi muitas vezes no Observador, Joe Biden foi um grande presidente. As consequências positivas do seu mandato só serão verdadeiramente compreendidas dentro de uns anos quando for claro para toda a gente que os Estados Unidos estão na vanguarda da transição energética, da nova revolução verde e da preparação para uma nova distribuição de poder. É certo que também cometeu alguns erros, nomeadamente o aumento das tarifas na guerra comercial com a China ou o endurecimento da política de imigração para travar uma fantasiosa invasão de Latinos pela fronteira Sul. Ambas as políticas são meramente desenhadas para acomodar o eleitorado tentado em votar em Trump. No entanto, sob qualquer ponto de vista objectivo, não têm qualquer sentido. A prazo, os seus efeitos serão muito negativos.

Apesar dos seus grandes méritos enquanto presidente, Biden está, objectivamente, sem condições de disputar a corrida eleitoral de 2024. Não faço quaisquer julgamentos sobre as suas capacidades cognitivas ou físicas. Para efeito eleitorais, o que importa verdadeiramente é a imagem que o candidato projecta e como isso tem implicações na mobilização da sua base eleitoral. No debate com Trump, Biden passou uma imagem de extrema fragilidade física e cognitiva, a qual, em grande medida, era conhecida do seu círculo mais íntimo há mais um ano. Com o tempo que ainda falta para as eleições, o mais natural, à luz de um Europeu habituado a partidos políticos fortes e com instituições intermédias com capacidade de pressionar as elites superiores, seria a substituição de Biden por outro candidato que conseguisse vencer Trump. No entanto, este processo não se afigura simples, nem evidente.

Ao contrário dos partidos Europeus, os partidos Americanos são coligações de facções, com grande heterogeneidade interna no caso dos Democratas, cujo único objectivo é juntarem-se para ganhar eleições. Para além disso, em ambos os partidos não existe uma liderança eleita que possa exercer um poder claro. Quando o partido está no poder, o presidente torna-se de facto no seu líder. O facto do presidente depender apenas e só dos eleitores – e não ter, por exemplo, uma eleição indirecta através dos deputados num parlamento – aumenta ainda mais o seu isolamento de pressões externas. Na prática, tudo isto significa que, em larga medida, Biden depende apenas de si próprio para continuar na corrida.

Aquilo que sabemos pela imprensa é que Biden está completamente inclinado a continuar na corrida. Apesar dos inúmeros apelos de muitos colunistas e figuras públicas para que Biden saia da corrida, Jill Biden aparenta estar de pedra e cal com o marido e a apoiar claramente a sua continuação na corrida. Para além disso, uma eventual saída de Biden teria consequências importantes para os Democratas. Em primeiro lugar, se Kamala Harris – uma vice-presidente muito impopular e cujas sondagens não são muito melhores do que as de Biden neste momento – não fosse não fosse a nomeada, a facção das políticas de identidade e de género revoltar-se-ia contra o establishment. Em segundo lugar, apesar de não ser absolutamente claro, as regras internas do partido ditam que todo o dinheiro que Biden arrecadou até agora para a corrida presidencial não poderia ser usado caso houvesse uma substituição do candidato. Em terceiro lugar, o único precedente histórico para uma mudança de candidato nesta altura da corrida não augura nada de bom. Em 1968, numa convenção aberta que, ironicamente, também decorreu em Chicago, como ocorrerá a convenção de 2024, o partido ficou completamente partido e sem qualquer estratégia eleitoral coerente. Nixon foi eleito três meses depois.

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