No próximo dia 1 de janeiro tem início mais uma presidência portuguesa da União Europeia, a quarta presidência semestral depois de 1992, 2000 e 2007. Esta presidência acontece num período excecional, diríamos nós, num tempo de céu nublado e boas abertas. Vejamos alguns aspetos mais relevantes que poderão ocorrer nesse período.

1 O contexto geral e global

No plano das relações globais, a União Europeia, mais do que nunca, precisa de tratar devidamente da sua autonomia geoestratégica e geopolítica e reparar os danos significativos causados na ordem internacional liberal nos últimos anos. Com efeito, o nacionalismo e protecionismo americanos, por um lado, e a assertividade geopolítica chinesa, por outro, baralharam as cartas da geoestratégia mundial. Senão vejamos:

  • O pós-RCEP (Acordo Comercial na Ásia-Pacífico)

O vazio de poder na Área Ásia-Pacifico, em razão do recuo da proposta de Tratado Transpacífico (TPP), foi ocupado por um dos maiores acordos comerciais naquela zona sob o comando da China, o chamado RCEP, que junta todos os grandes países da região e dez países da ASEAN. Importará, agora, saber quais são os próximos passos da União Europeia nesta matéria.

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  • O pós-multilateralismo da ordem liberal

Trata-se de reparar os danos causados em algumas instituições do sistema das Nações Unidas, a OMS e a OMC, por exemplo, mas, também, aumentar a resiliência e a recuperação das áreas que são cobertas pelas ajudas à cooperação internacional por via das agências da ONU.

  • O pós-Brexit

O período pós-Brexit é, neste momento, ainda uma incógnita, trata-se de criar um level playing field aceitável (condições equivalentes de partida) para ambas as partes, que permita um recomeço tranquilo das relações entre a União Europeia, os seus Estados-membros e o Reino Unido.

  • O pós-Trump

O período pós-Trump é, por enquanto, uma incógnita, trata-se de recuperar a “normalidade” das relações transatlânticas no quadro de um mundo multipolar onde a China assume, como nunca, um papel geopolítico e geoeconómico muito relevante. Importará saber, a partir de agora, qual é o novo normal nas relações transatlânticas entre os EUA, a EU e o RU.

  • O pós-Pandemia da Covid-19

O período pós-pandemia é, ainda, uma incógnita, trata-se de reparar os danos causados aos serviços nacionais de saúde e dar a melhor sequência aos programas de vacinação.

  • O pós-resiliência e recuperação

Trata-se de lidar com os efeitos recessivos da Covid-19 e evitar, antes de mais, uma recuperação assimétrica que aumente ainda mais as divergências económicas e as desigualdades sociais no interior da União Europeia e executar com eficácia e eficiência os fundos europeus criados para a resiliência e recuperação.

  • O pós-Acordo de Paris

Trata-se de dar seguimento e cumprimento efetivo aos objetivos do Acordo de Paris, recuperando os EUA e outros Estados para esse esforço comum e tirando partido pleno dos pactos de ação climática e digital até 2030 e 2050.

  • O pós-5G digital

A próxima fase do 5G tem fortes implicações geopolíticas, com especial relevância para a segurança cibernética entre grandes blocos. No próximo futuro, a relação triangular entre os EUA, UE e a China passará muito pelos modelos de negócio que forem seguidos pelas companhias tecnológicas, como se comprova com o caso da Huawei. O mercado único digital é muito sensível a esta geopolítica do 5G.

2 As prioridades da presidência portuguesa

As prioridades da presidência portuguesa estão alinhadas com a agenda estratégica da União Europeia, o programa para 18 meses do trio da presidência 2020/2021 composto e o programa de trabalho da Comissão Europeia para 2021. Tendo tudo isto em conta, a presidência portuguesa estabeleceu, assim, de forma esquemática, as suas prioridades:

  • A Europa resiliente

Trata-se de dar seguimento ao programa de resiliência e recuperação (PRR) e, para tal, de implementar os regulamentos de aplicação do programa, sem nunca abdicar dos princípios do Estado de Direito democrático.

  • A Europa social

Trata-se de reforçar o pilar social da União (cimeira no Porto em maio) e o modelo social europeu no quadro das grandes mutações que são previsíveis e que decorrem da agenda ecológica e energética e da agenda digital.

  • A Europa verde

Trata-se de dar seguimento ao pacto ecológico europeu e à lei do clima (objetivos de descarbonização escalonados no tempo), de continuar na transição energética, na biodiversidade dos ecossistemas e na economia circular.

  • A Europa digital

Trata-se de prosseguir na materialização do mercado único digital, com mais inovação e regulação do risco digital, mas sem nunca abdicar da digitalização inclusiva e da democracia digital, num quadro global onde a cibersegurança é um fator fundamental.

  • A Europa global

Trata-se de promover a autonomia geoestratégica da União Europeia e evitar a sua balcanização através de mais e melhor multilateralismo, de contrariar o mundo bipolar, de restabelecer as boas relações transatlânticas, de intensificar as boas relações de vizinhança, de abrir novos canais de comunicação com África e Índia e de reforçar a ajuda e a cooperação internacionais.

3 Os resultados do Conselho Europeu de 10 e 11 de dezembro

Os resultados do Conselho Europeu de 10 e 11 de dezembro devem, evidentemente, ser tidos em devida conta pela presidência portuguesa, por isso, importará resumir, brevemente, as suas principais conclusões:

  • No plano financeiro, trata-se de dar sequência ao projeto de regulamento relativo a um regime geral de condicionalidade para a proteção do orçamento e dos interesses financeiros da União;
  • No plano da saúde pública, trata-se de dar continuidade às propostas relativas a uma União para a Saúde;
  • No plano das alterações climáticas trata-se de dar sequência à nova meta de 55% para as emissões de GEE para 2030, aprovar a lei europeia do clima e cumprir uma transição justa nesta matéria;
  • No plano do combate ao terrorismo trata-se de dar sequência às ações de reforço da cooperação policial e judiciária;
  • No plano das relações externas trata-se de retomar a “normalidade” das relações transatlânticas, de concretizar uma conferência multilateral sobre o Mediterrâneo Oriental, de renovar a parceria para a Vizinhança Meridional e uma nova Agenda para o Mediterrâneo, de adotar um regime global de sanções em matéria de direitos humanos;
  • No plano da zona euro, o Conselho realizou, ainda, no dia 11, uma cimeira do euro sobre união bancária e união do mercado de capitais.

4 O futuro da Europa, uma União Europeia de valores ou de instrumentos?

As grandes transições – climática, energética, demográfica, digital, laboral, económica, social e política – impelem a União Europeia para níveis de integração, regulação e contratualização cada vez maiores. Assim, sob proposta do Parlamento Europeu, está previsto realizar uma conferência sobre o Futuro da Europa até ao final de 2022, que poderá desembocar, ou não, numa próxima revisão dos tratados europeus. A União Europeia está, mais uma vez, numa grande encruzilhada em que as lógicas fundamentais de organização da União, cooperação e integração, unanimidade e maioria, supranacionalidade e intergovernamentalidade voltam a estar em agenda. Quero crer que estamos apenas no início de um grande rearranjo político na constituição da União Europeia e que, no futuro próximo, estaremos confrontados com a questão política central:

  • Queremos uma união política europeia mais vertical, com um núcleo duro de mais integração e maioria qualificada e várias geometrias variáveis de integração, regulação e contratualização, à semelhança do que acontece, hoje, com a zona euro e o espaço Schengen?
  • Queremos uma união política europeia mais intergovernamental com mais cooperação estruturada, unanimidade e contratualização e com arranjos muito variáveis dentro e fora dos tratados?
  • Queremos uma união política europeia mais integrada politicamente, mas, na sequência do Brexit, com menos Estados-membros e geometrias muito variáveis de alinhamento e relacionamento com países europeus vizinhos?

Em todos os casos, a complexidade das grandes transições referidas não se compadece com uma União Europeia convertida num mecanismo de gestão de crises recorrentes. O desgaste do projeto europeu seria notório, o número de países relutantes cada vez maior, e seria uma questão de tempo até ao momento da “grande implosão”. Por todas estas razões, aguarda-se, para breve, realização desta conferência sobre o Futuro da Europa.

Notas Finais

Para lá das grandes questões da União Política Europeia, vale a pena, nesta altura, ter um caderno de encargos sobre algumas questões que podem pôr em causa o “normal” funcionamento das instituições europeias, tal como as conhecemos hoje. Vejamos algumas dessas questões:

  • O efeito Brexit pode aumentar o número de “países relutantes”; de facto, o RU era o rosto de uma certa corrente de pensamento político acerca da Europa, a sua saída aumentará o risco de exposição de alguns países mais pequenos que se ocultavam e agiam na sombra do RU (alguns países nórdicos);
  • Os próximos ciclos político-eleitorais em 2021 e, em particular, na Alemanha e Países Baixos, podem radicalizar os assuntos europeus e aumentar o risco de balcanização da política europeia; é imperioso fazer baixar a ansiedade, a falta de confiança e até o medo, para evitar a subida do radicalismo e populismo;
  • O problema da reindustrialização e do confronto eventual entre “campeões europeus e campeões nacionais”; uma vez que a União Europeia quer promover mais fusões e concentrações industriais e bancárias com o objetivo maior de criar campeões europeus, podemos estar na iminência de assistir a uma colisão entre os interesses nacionais e os interesses europeus.
  • O problema do 5G e do mercado único digital é uma questão geopolítica da maior relevância, que está longe de estar regulado e que suscitará, ainda, muitos equívocos e controvérsia;
  • O problema do level playing field ou equivalência nas condições de concorrência (e nos mecanismos de arbitragem de conflitos) nas relações entre a União Europeia e o Reino Unido poderá arrastar-se por muito tempo e ser uma fonte permanente de contencioso nas relações bilaterais;
  • O problema dos choques assimétricos entre os Estados-membros da União Europeia, por virtude das diversas transições em curso, é um problema muito sério que precisa de ser devidamente acautelado no plano europeu, por isso mesmo se fala em transição justa;
  • O problema político do voto por unanimidade em muitas áreas crescerá à medida que os efeitos externos e transversais das grandes transições afetarem a eficácia e eficiência das medidas de política europeias;
  • O problema da instrumentalização dos assuntos europeus para fins de política doméstica servirá para alimentar os radicalismos e populismos na ordem interna;
  • As questões dos novos recursos próprios, do voto por unanimidade em matéria fiscal, os problemas de soberania e extra-territorialidade em matéria de evasão e fraude fiscais, a corrupção e a proteção dos interesses financeiros da União continuarão a estar na agenda política europeia e a suscitar muita controvérsia;
  • O problema da autonomia estratégica da Europa em face dos novos realinhamentos comerciais e concorrenciais nas relações EUA-EU-CHINA alimentará muitas discussões sobre o neoprotecionismo europeu e uma certa europeização das cadeias de valor globais;
  • O problema da condicionalidade política democrática, a propósito do veto da Hungria e da Polónia, será objeto de reavaliação posterior (artigo 7º do TUE) à luz da interpretação do Tribunal de Justiça Europeu, mas servirá, também, para reabrir longos debates sobre federalismo europeu e soberania nacional.

Deixo para o fim o “dia seguinte” de um no deal com o Reino Unido. O Conselho Europeu acaba de tomar medidas de emergência para evitar a paralisia total dos transportes e assegurar a “conectividade básica”. Eis um bom começo para a nossa presidência. Com acordo ou sem acordo final, será um dia memorável e, espero eu, um dia de esperança renovada para todas as partes.