Há sempre uma primeira impressão, de que o amor à primeira vista — tão glosado, e tão usado, às vezes abusado, ou forçado, com num recente programa televisivo, o “casados” à primeira vista — é uma modalidade.
Ninguém escapa a um primeiro embate, em pessoas, em coisas, paisagens, filmes, teorias, que deixam marca em nós. Trazemos connosco marcas imemoriais, que estão guardadas em lugares distintos dentro de nós. Geografia interior baptizada por Santo Agostinho como “Palácio da Memória”.
É com espanto e agradecida que leio as páginas do seu livro Confissões, que descrevem esses quartos, salas, de uma casa vasta e sumptuosa, a que chama Palácio.
Os homens, diz ele, deslocam-se a muitos lugares, aos cimos dos montes, aos mares e oceanos, e nem reparam que neste momento — em que os não têm diante dos olhos, os montes e os mares — os vêem como se os tivessem diante de si. Já indaguei de como é isso possível? E espanto-me eu com este prodígio, ou dou-o por adquirido, sem o apreciar? É graças a essa grande potência, a Memória, lugar onde guardo toda a minha experiência passada. Para lamentar de seguida que os homens não sabem aproveitá-la.
Com efeito os nossos dias apressados levam-nos muitas vezes a reagir ao que acontece — aos tais embates em coisas várias — sem que tenhamos em conta o que temos guardado do passado. É como se este não existisse, e nós pura reactividade. Lembro as formigas que ao embaterem umas nas outras tocam e fogem, um presente mecânico e rápido. É como se o dia nos fugisse entre os dedos, como se eu quisesse agarrar a água com a mão, o que é impossível.
E assim o tempo nos parece impiedoso e queixamo-nos com se nele houvesse uma culpa: mas já passou? Estamos outra vez no Verão! Parece que tudo passa mais depressa, qualquer dia é já Natal outra vez, e por aí….
E esquecemo-nos que há todo um trabalho a fazer, se é que queremos realmente levar uma vida mais plena, cheia daquilo que mais desejamos. Volto a Agostinho: os homens andam por fora, por exterioridades, e não pensam sequer em si mesmos, no tal Palácio da Memória, onde se encontra o que vivemos, o passado, que aí está presente, de uma forma que não sei explicar mas está. Não procures fora mas em ti, insiste o filósofo. Em ti, no Palácio da Memória, tens o presente do passado (a memória), o presente do futuro (a expectativa, o projecto), e o presente do presente (o momento). Em mim há todo um mundo a reconhecer e a construir.
Se digo agora “Mosteiro dos Jerónimos” sem o ter à frente, ele vem-me imediatamente à Memória, onde sempre esteve desde o momento em que dele tive conhecimento, seja porque os meus pais me falaram dele, seja do que dele vi quando o visitei pela primeira vez, e o que dele fui experimentando nas inúmeras vezes que o visitei, nas mais diversas circunstâncias. E com isso vem a presença das pessoas com quem lá estive, do que então dissemos e cantamos, das roupas que tínhamos vestidas, da 9ª sinfonia de Beethoven que uma vez escutei no seu belo Claustro, e das emoções que vivi ao ouvi-la, e das lágrimas deitei com a “ode à alegria” do andamento final. E colada a esta memória vêm de imediato as memórias de a ouvir na Gulbenkian, e a de outras peças, e vem o Bolshoi, e os Seteais, que tanto experimentei e guardo.
E quem diz “Mosteiro dos Jerónimos” diz “Faixa de Gaza”, onde nunca estive mas que em mim está também presente, estando nela todos os dias. Com efeito vejo-a diariamente nos noticiários, e está guardada no meu Palácio interior. Convoco-a sempre que quero, e ao meu chamado lá aparece ela, a “faixa de gaza”, e com ela uma série de coisas que não chamei, mas que se impõem por si mesmas, como o António Guterres ou o Zelensky. Desta vez são elas que vêem a mim, umas atadas às outras, e me convocam, sem eu ter pedido. Assaltam-me, e às vezes em sonhos. Por vezes perseguem-me, como se tivessem vida própria.
Contendo em mim tal espólio, às vezes dinamite, sinto a imperiosa necessidade de arrumar o meu Palácio: limpar, arrumar, decorar, os espaços que me habitam, para poder melhor habitar neles. Quero ser a dona da casa e o dono da obra!
E parece que me perdi, perdendo o mote deste artigo, as primeiras impressões. Mas isso é só impressão. Ao embater pela primeira vez com uma realidade levo comigo toda uma marca de memória que me permite acertar o alvo, isto é não me enganar com o que me aparece.
Estimar a pessoa (ideia, coisa e por aí) que me aparece no caminho, é fruto de experiência. E à medida que avanço na idade não preciso de muitos sinais para me aperceber do que tenho à frente. Posso enganar-me é certo. Mas também a ciência se engana muitas vezes.