A notícia da caótica saída dos Estados Unidos da América (EUA) da sua mais longa guerra, no Afeganistão, foi recebida com alguma felicidade por parte da China, nomeadamente dos seus altos representantes. Não apenas pelo facto dos EUA estarem a disputar várias frentes com os chineses, principalmente na influência económica global, mas também pela oportunidade de conseguirem mais um parceiro hostil aos americanos. A China, no entanto, tem mais a perder com saída americana do Afeganistão e os oficiais do Partido Comunista da China (PCC) sabem disso. Os recursos e a atenção serão agora focados nos novos desafios e a China é um deles.
Existe uma razão para a exibição pública de felicidade: o nacionalismo. A política nacionalista não é nada de novo na China, está intimamente ligada com a ideologia do PCC. A relação bilateral sino-americana endureceu, com várias trocas de acusações que ocorrem principalmente de disputas comerciais, crescendo uma narrativa anti-China principalmente desde a administração Trump. Tudo isto fez com que qualquer negatividade relacionada com os EUA seja utilizada como forma de propaganda por parte dos chineses, mesmo que de forma irracional, como é o presente caso.
Como referido, os altos representantes do PCC sabem que este reequilíbrio de poder global e foco é prejudicial para os seus planos. A retirada do Afeganistão em nada altera ou prejudica as características do poder global dos americanos, apenas cria um problema de relações públicas no que toca à imagem dos EUA e Biden. Em termos de força militar e recursos económicos, os EUA continuam muito dominantes. Ao contrário dos seus dois rivais diretos, China e Rússia, os EUA não têm qualquer consequência na instabilidade do Afeganistão. O grande fluxo de refugiados, o aumento do terrorismo islâmico, o tráfico de drogas (o Afeganistão é o maior produtor de ópio do mundo) são problemas que vão ter efeitos nos países nas imediações do Afeganistão, nomeadamente Rússia e China. O problema do ressurgimento do terrorismo islâmico é especialmente preocupante para a China, lembrando os confrontos do governo de Pequim na sua província de Xinjiang com os Uighurs, uma minoria muçulmana.
Nos últimos dias, a China tem prometido participar na reconstrução do Afeganistão com um programa de investimentos que estará ligado à Belt Road. A liderança talibã vê esta parceria com bons olhos devido às diretrizes de política externa chinesa de não ingerência em outros países. Isto quer dizer que a China irá fechar os olhos a qualquer atrocidade talibã. Do ponto de vista económico fará sentido para a China, tendo em conta o posicionamento do Afeganistão no Médio Oriente e na Ásia central, mas principalmente o facto de ser rico em cobre, um dos principais componentes na produção de tecnologia. Do ponto de vista geopolítico, no entanto, a China não está preparada para substituir os EUA na região, pelo facto do poder americano ser bastante superior ao chinês, militar, tecnologica e economicamente. Por essa razão, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, telefonou ao secretário de Estado americano Antony Blinken, referindo que os EUA devem continuar envolvidos no Afeganistão, ajudando na manutenção da estabilidade e no combate ao terrorismo e violência.
O foco na área da Ásia-Pacífico e o maior envolvimento dos EUA com aliados asiáticos, como a Coreia do Sul ou o Japão, são um desafio para a China. A guerra do Afeganistão custou quase um quarto da dívida nacional americana (6,4 biliões de dólares), recursos vastos que serão desviados para esses novos desafios. No ultimo mês de Abril, Biden referiu diretamente que os EUA nada têm a ganhar com uma nova guerra com os talibãs, sendo que o objetivo será aumentar a competitividade americana para enfrentar uma cada vez mais assertiva China.
A saída americana tem particulares efeitos em Taiwan, um assunto sensível para o PCC. Taiwan é um território insular que se considera independente da China, que, pelo contrário, é considerado pelos oficiais chineses como uma província chinesa rebelde que esperam recuperar para o seu território, se necessário pela força. No entanto, os EUA estão obrigados por lei a ajudar Taiwan a defender-se, razão pela qual os norte-americanos são o seu principal fornecedor de armamento. Taiwan é, neste momento, intocável para os chineses, que nada mais podem fazer do que exercícios militares nas imediações da ilha como forma de provocação. Os EUA já possuem uma grande presença militar na Ásia-Pacífico, com dezenas de milhares de militares nas fronteiras da China e frotas constantes nos mares adjacentes. É um dos principais intervenientes na região, posição que mantém desde o final da II Guerra Mundial. E essa posição vai ser fortemente reforçada depois das guerras no Médio Oriente.
Para além do poder militar e tecnológico superior, a questão das relações entre aliados é crucial no equilíbrio de poderes na Ásia. Coreia do Sul, Japão, Singapura, entre outros, partilham os mesmos valores com os americanos. São aliados em valores para além dos interesses. Isto significa que será muito difícil para os chineses conseguiram contrabalançar essas relações apenas com os interesses, pois são sociedades contrastadas, com diferentes formas de atuação. Estas relações de comprometimento foram de certa forma apanhadas de surpresa com Trump e a sua visão mercantilista do mundo. Ainda assim, no seu núcleo mantiveram-se iguais, sendo que com Biden serão reforçadas.
Um tema de grande importância é o terrorismo islâmico. Os talibãs já referiram à China que não vão abrigar células terroristas. Mas quão estável é a liderança talibã no Afeganistão, tendo em consideração o constante clima de confronto com as dezenas de tribos e grupos que se opõem dentro do país? Mesmo entre os talibãs existem diferentes fações, o que significa que a situação no futuro pode mudar com grande facilidade. Existem no Afeganistão militantes uighurs, pertencentes ao Movimento Islâmico do Turquestão Oriental. Muitos desses militantes estão a regressar ao Afeganistão depois de combater na Síria. Os talibãs são sensíveis à questão dos uighurs na China, sendo muito possível funcionarem como base de apoio para possíveis ataques em Xinjiang.
Não é certo que o Afeganistão se torne num parceiro credível da China, nem está nos interesses dos chineses subsidiar eternamente um Estado afegão falido. Devemos também analisar a história comparativamente, principalmente com o Vietname. A saída americana do Vietname também foi caótica e o país acabou por cair nas mãos do regime comunista, mas hoje o Vietname é um dos principais parceiros dos EUA no Sudeste Asiático.