Na maioria das análises geopolíticas é sempre importante termos um contexto histórico. Hoje isso é mais verdade que nunca, permitindo não cairmos nas armadilhas das falsas comparações históricas ou falsas causalidades. O nosso contexto atual é de facto muito semelhante aos anos 30 do passado Séc.XX, no sentido em que muita agitação social foi acumulada ao longo das décadas, causada por uma série de problemas. A incapacidade de resolver a raiz destes problemas por parte do establishment político fez com que alternativas fossem criadas. Essas alternativas não significaram necessariamente a resolução desses conflitos, mas personificaram a revolta social, que muitas das vezes é irracional, voltando o ódio para bodes expiatórios, planos políticos e económicos extremistas, conflitos, culminando em reconfigurações do mundo. Como referi, as alternativas não significam necessariamente resoluções, podendo ser alternativas populistas e assentes na desinformação (ilusões simplistas são mais fáceis de engolir do que verdades complexas). Neste momento temos essas mesmas acumulações em diferentes partes do mundo. As reconfigurações são acontecimentos com alterações na ordem mundial que podem resultar (muito frequentemente) em eventos de natureza violenta, provocando choques e instabilidade. Temos vários exemplos, da antiguidade até à modernidade, desde a guerra do Peloponeso (Esparta-Atenas), as guerras púnicas (Roma-Cartago), as guerras franco-britânicas, a II Guerra mundial e a mais recente, Guerra Fria, apenas para mencionar alguns exemplos. Tal não significa que seja correta a comparação das diferentes reconfigurações da ordem mundial, mas podemos de facto tirar algumas ilações das causas que levaram aos diferentes desfechos, usando exemplos do passado para nos guiar no presente.

Na Europa, observamos uma região ainda na ressaca da crise financeira internacional (2008), a qual nunca conseguiu recuperar verdadeiramente. O crescimento anémico, a incapacidade de ser decisiva nas novas tecnologias e o agravar da qualidade de vida em vários países europeus, fez com que antigas respostas reaparecessem sob forma de novas respostas. Os partidos de génese nacionalista estão em crescimento, principalmente no sul e centro europeu. Navegam na onda populista, carregando nos diferentes ódios das pessoas, prometendo requalificar a economia, ao mesmo tempo que rejeita a abertura e o multiculturalismo, que foram a referência da União Europeia desde a sua criação. Uma diferença relevante para com os anos 30 é que a Europa já não é um dos centros do poder militar mundial, o que significa que esses partidos já não manuseiam o mesmo poder que os seus semelhantes tinham há 80 anos atrás. O poder militar está centrado nos EUA, que continua (e vai continuar) indiscutível, não podendo ser rivalizado, pelo menos não sob forma de conflito aberto.

A reconfiguração dos nossos tempos não pode ser comparada à dos anos 30 e 40, simplesmente porque os atores principais são diferentes e os problemas são outros. A relação bilateral mais importante do mundo é neste momento a dos EUA com a China, que estão interdependentes como nunca antes 2 grandes potências estiveram. A URSS tinha pouquíssimas relações económicas com os americanos. A Alemanha Nazi não era interdependente de qualquer outro país dos Aliados. EUA e China têm muito mais a perder num confronto entre ambos do que as potências beligerantes da II Guerra Mundial ou da Guerra Fria. Não significa que não existam rivalidades, mas vão continuar a centrar-se a nível económico principalmente, resultando num equilíbrio quase perfeito, que de resto pode ser observado na discordância mais crítica entre ambos os países, que é a condição de Taiwan. A Ilha Formosa, como a batizaram os portugueses, é o aspeto mais importante da política do Partido Comunista Chinês, que considera central o plano da reunificação com Taiwan. No entanto, o status quo vai continuar. A China tolera (ainda que não admita) uma política contraditória e problemática dos americanos para com Taiwan, que existe desde as mudanças drásticas na administração Reagan, que desfez muito do que foi conseguido com Nixon e Kissinger, autores de uma aproximação e reconhecimento da China de Mao Zedong. Taiwan vai continuar a governar-se, os americanos vão continuar a fornecer armas ao governo de Taipé e os chineses vão continuar a fazer exercícios militares no estreito, sem que se espere grandes alterações nos próximos anos. Esta situação continuará precisamente porque não existe interesse num choque directo com os EUA, o seu principal parceiro comercial e de investimento, crucial numa altura de maior incerteza económica na China.

Terá então a reconfiguração início na ameaça da Rússia aos seus antigos territórios satélite na Europa? Alguns dos países que pertenciam à antiga URSS fazem agora parte da União Europeia e NATO, o que resulta na constante sombra do artigo 5 da NATO, onde um ataque a um país membro é um ataque a toda a aliança. Não devemos menosprezar Putin e Rússia (e esse foi um erro, tanto dos EUA como da UE nas últimas 2 décadas). No entanto, o que esta guerra na Ucrânia nos está a mostrar é uma tremenda incapacidade e impreparação militar da Rússia. A guerra na Ucrânia, que vai continuar ao longo deste ano, com mais ou menos financiamento do ocidente, vai resultar provavelmente no entrincheiramento das posições e no trágico aumento de mortes dos 2 lados. A Ucrânia irá perder territórios, mas o objetivo de Kiev se tornar num Estado fantoche de Putin falhou espetacularmente. 80% do território ucraniano terá agora um claro caminho para adesão à UE e NATO, precisamente a linha vermelha que Putin queria evitar no inicio da sua operação especial. Acrescento, que a nível social, os ucranianos irão ter uma enorme aversão à Rússia que ficará enraizada na população por muitas décadas, resultando num quase total afastamento entre 2 povos que têm muita história e cultura em comum. Sendo uma potência em crescente decadência, tanto a nível económico como demográfico, e tendo agora firmado maior cooperação com Estados pária como o Irão e a Coreia do Norte, não é perceptível como esta aventura de Putin pode acabar bem no final, o que torna toda esta situação mais instável, devido ao que normalmente o desespero pode causar. Muito se fala na parceria “sem limites” da Rússia com a China, mas ironicamente, a China pode ser um contrapeso importante para que a Rússia não se aventure mais numa provável escalada de consequências desconhecidas. A China está preocupada com a estabilidade para reabilitar a sua economia, e para isso a sua relação com os EUA é crucial, mais importante que tudo o resto, inclusive, mais importante que a parceria com a Rússia, onde o principal beneficio é a compra por parte dos chineses de energia barata aos russos. Claro que esta parceria também funciona como bloco rival à hegemonia e instituições do ocidente (americanos), mas esse é outro aspecto, que neste momento pode ter uma importância menor para os chineses.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O desespero de Putin, aliado a um Irão cada vez mais assertivo no Médio-Oriente, pode ser uma faísca para um evento mais violento. Os acordos de Abraão, firmados na administração de Trump, reconfiguraram as dinâmicas no Médio-Oriente, tornando o Irão mais perigoso. Esses acordos fizeram com que o Hamas, num acto de desespero, cometesse o mais terrível dos crimes, por forma a desestabilizar as novas cooperações que começavam a nascer entre Israel e as nações muçulmanas da região (inclusive a mais importante, a Arábia Saudita), colocando de vez no esquecimento a questão da Palestina. O Irão de momento financia e fornece armas a Hamas, Houthis, Hezbollah, tal como à própria Rússia. É uma frente expressiva, que claramente é motivo de preocupação. Estaria mais atento a esta região do que à Ucrânia ou ao Estreito de Taiwan, para possíveis conflitos mais alargados, tendo em conta os diferentes equilíbrios. A situação no Médio-Oriente também é agravada pelo facto de Israel estar numa operação quase sem limites em Gaza, provocando baixas civis e crises humanitárias sem precedentes, principalmente por estar em causa a sobrevivência política (e pessoal) do seu Primeiro-ministro, Netanyahu.

Os EUA e os britânicos já estão a atacar posições dos Houthis no Mar Vermelho e no Iémen. Há a possibilidade de um conflito mais feroz entre Israel e os Hezbollah, no Líbano. Podemos já considerar uma guerra indirecta entre o bloco ocidental e o Irão, um país que muitas das vezes não é governado pela razoabilidade, mas por dogma religioso extremista. Caso exista uma incidência grave no médio-oriente, resta saber qual o papel da Rússia, Europa, Turquia, China e Índia em tudo isto, algo que é difícil de prever ainda.

Vivemos tempos conturbados, que podem ainda ser mais instáveis pelas migrações agravadas pelos conflitos e as próprias alterações climáticas, que também vão continuar a aumentar os fenómenos climatéricos extremos. Não existe ainda um pacto social claro para resposta a tudo isto, tal como houve no passado, como o Plano Marshall ou a Europa do Estado social. O que podemos contar é que as coisas fiquem piores antes de melhorar.