Com a pandemia em nova curva ascendente, sentindo-se já e antevendo-se ainda o maior impacto do número de contágios, está à vista de todos, e é a própria Ministra da Saúde quem o confirma: o SNS está perto do seu limite.
Reconhecer que o SNS está a atingir a capacidade máxima de resposta, significa que as pessoas – doentes de COVID, doentes de outras patologias não COVID, utentes que procuram diagnósticos, necessitam de cirurgias ou tratamentos, crianças e grávidas que devem ser seguidas, entre outros – estão em risco acrescido de ficar sem resposta de saúde, pelo menos em tempo útil.
Primeiro as pessoas.
No momento concreto, “salvar” as pessoas tem de ser o primeiro objetivo na definição da política pública. E, por maioria de razão, nenhuma outra “agenda” deveria interferir na tomada de decisões.
Nesta fase, para salvar pessoas é crucial incluir toda a capacidade de saúde instalada no país, considerar as valências, os meios humanos, os meios “técnicos” e a sua distribuição geográfica, para estabelecer uma organização otimizada, eficiente, sem redundâncias e com minimização de ruturas. Com o SNS, com o setor privado e com o setor social.
E, neste princípio geral, há um aparente acordo. Mas apenas aparente, porque quando se repetem narrativas enganadoras, quando as decisões são casuísticas e quando se “anseia” por uma requisição civil, as diferenças são fortes e devem ser contestadas. Ponto a ponto:
1º Uma narrativa enganadora: “O privado fechou as portas quando as pessoas mais precisavam de cuidados de saúde”
Esta é uma história criada e repetida pela Esquerda na expectativa de que se torne numa “verdade”, ainda que venha sendo reiteradamente desmentida, por exemplo aqui, no fact check do Observador.
Factualmente, durante a primeira fase da pandemia, e por despacho da Senhora Ministra, todo o sistema de saúde suspendeu, parou, a atividade não urgente. Portanto, quem fechou portas foi o SNS e por decisão da tutela.
Nessa altura, todo o sistema esteve focado na atividade COVID, incluindo os hospitais privados, como já tive ocasião de clarificar aqui.
A título ilustrativo, apenas para relembrar factos, pelo menos cinco hospitais privados (e vários do setor social), estiveram disponíveis para o diagnóstico e tratamento de doentes de COVID — Luz Lisboa, Hospital da Trofa em Matosinhos, HPA em Lagos, CUF Infante Santo e CUF Porto. Foi disponibilizado um total de 400 camas de internamento e mais de 80 de Cuidados Intensivos (UCI), tendo sido atendidos 2.270 cidadãos com suspeita de infeção, 112 dos quais internados.
O setor privado, entretanto, tem assegurado a atividade assistencial regular – os tais doentes não COVID de que tanto se fala – para quem tem carteira, seguro ou, claro, ADSE. Funciona nessa medida, como uma válvula de alívio para (alguns) utentes e para o próprio SNS que, de há uns meses a esta parte, voltou a ter de suspender atividade não urgente em várias unidades.
2º Decisões casuísticas: “Cada Autoridade Regional de Saúde pode contratualizar, se necessário, com o setor privado”
Não havendo, nos termos da narrativa criada, portas fechadas, a verdade é que as portas deveriam ter sido intencionalmente abertas a todos, de forma organizada, planeada e contratualizada.
Mas a decisão da Senhora Ministra não foi essa. Em 6 de novembro, determinou a possibilidade de cada ARS, segundo os seus critérios próprios, recorrer “a camas de Serviços de Medicina Intensiva de unidades prestadoras de cuidados de saúde dos setores privado e social”.
Argumentou a senhora ministra que “o SNS está a responder” à pandemia e que, portanto, a sua orientação política reflete “uma questão de escolhas”.
De facto, esta escolha, de natureza casuística, não garante que o sistema esteja ao serviço das pessoas de forma preparada e optimizada, uma vez que os setores privados e social apenas são chamados a dar resposta a picos, em valências variadas, e sem grande pré-aviso e com grandes diferenças entre ARS.
Esta escolha tem levado a que não se alivie a pressão sobre o SNS, nem sobre os seus profissionais de saúde e não seja dada resposta à atividade assistencial que fica por fazer. Segundo o Portal da Transparência do SNS, entre janeiro e novembro de 2020, e em comparação com o período homólogo, ficaram por realizar quase 2 milhões de atos presenciais nos hospitais, mais de 100 mil cirurgias e mais de 610 mil consultas nos cuidados de saúde primários.
Em outubro, o atual e cinco antigos Bastonários da Ordem dos Médicos dirigiram uma carta aberta à tutela, insistindo para que fosse criado um plano de recuperação da atividade do SNS, contratualizado com os setores social e privado. Nela lê-se: “Os sectores de saúde sociais e privados podem ser mais envolvidos no esforço COVID e não-COVID para que a capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada”.
Não foi essa a escolha de Marta Temido, mas poderia ter sido até porque os privados têm mostrado disponibilidade para isso – mesmo aos “preços de custo”, o que daria uma longa discussão económica…
3º Requisição Civil: “Não hesitaremos na requisição civil dos hospitais privados”
Para a Esquerda a narrativa corre assim: os privados falharam na primeira fase, logo não são fiáveis; fazem negócio com a doença (“pecado” que é convenientemente omitido quando se trata da ADSE) e por isso têm que obedecer ao SNS. Em consequência, pedem a requisição civil – a forma mais aproximada de sentir o aroma de uma nacionalização
Para a Senhora Ministra, que quer provar a todo o custo que o SNS é capaz de suprir todas as necessidades, mesmo durante uma pandemia – ainda que isso signifique enviar as pessoas para listas de espera –, a requisição civil é um ato de coragem e a única forma de não perder a face.
Mas a pergunta relevante é: requisitar o quê e para quê? Se os privados já estão a colaborar com mais de 700 camas de internamento, se já se disponibilizaram para fazer mais e se até aceitam os preços impostos pelo Ministério.
Para uma melhor e mais adequada resposta de saúde às pessoas, o que falta é mesmo vontade, planeamento e articulação. Sem isso, e com a atividade assistencial em curso, os privados não conseguem oferecer camas adicionais, nem haverá profissionais de saúde disponíveis (desde logo enfermeiros) de um dia para o outro.
É nessa vontade, planeamento e articulação entre SNS e setores privados e social que urge ao governo concentrar-se, sem “agendas”.
A requisição civil só serve para animar o debate político. É só fumaça.