Fomos tomados por um inimigo invisível que nos colocou em estado de emergência, que nos rouba a saúde, que mata alguns de nós, que nos priva de liberdades, que nos distancia uns dos outros, que nos impede de abraçar os nossos – porque sermos próximos é precisamente o que nos pode infetar.

No mesmo tempo, este iníquo inimigo impele-nos ao melhor de nós, à consciência de que estamos inexoravelmente interligados, de que a resposta só pode ser comum: todos e cada um são parte da solução. E isto é verdade tanto ao nível individual, como ao nível institucional.

Por ser isto tão claro, quis acreditar que este era o momento de tréguas em divisões ideológicas, de suspensão da irrealista ideia de que só o Estado detém os meios e as respostas, de evitar posicionamentos políticos baseados em informação parcial. Se não agora, quando?, pensei.

Lamentavelmente, não é assim, não tem sido assim, em diferentes áreas. E a Saúde é a mais evidente, talvez por ser a primeira linha do combate. Do combate ao vírus e do combate ideológico, o tal que não deveria ter lugar agora.

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Afirmações como “o setor privado tem de ser chamado à sua responsabilidade no cenário epidémico que se vive em Portugal” merecem contraditório. Não para defender o setor privado, que não precisa e é papel que não me compete, mas para repor a verdade, do que todos beneficiaremos.

Tem o setor privado estado ausente? Tem fugido à sua responsabilidade no combate ao Covid-19?

Qual tem sido a atitude dos grandes grupos detentores de hospitais privados: viraram costas ao Ministério da Saúde e às pessoas? Fecharam portas e deixaram de atender doentes e estão à espera que a “onda passe” – a perder dinheiro, mas sem risco e incómodos?

Desde semana passada há 5 hospitais privados que, em estreita colaboração com o Ministério da Saúde, estão já dedicados ao diagnóstico e tratamento de doentes de Covid — Luz Lisboa, Hospital da Trofa, em Matosinhos, Hospital Lusíadas, em Lagos, CUF Infante Santo e CUF Porto.

Tudo somado são cerca de 400 camas de internamento e mais de 80 de Cuidados Intensivos (UCI). Foram já atendidos 2.270 cidadãos com suspeita de infeção e 112 doentes internados, dos quais 9 em UCI.

Há ainda uma série de outras unidades destes grupos a colaborar diretamente com hospitais do SNS, para os libertar de atividade e ocupação. E a disponibilidade para contribuir ainda mais no sentido de não deixar sem resposta de saúde os doentes não Covid que o SNS não pode agora atender.

Uma visita rápida aos sites destes hospitais permite também saber que, nos termos do Estado de Emergência e das orientações da DGS, todos mantêm atividade através das urgências abertas, de teleconsultas e de bloco operatórios a funcionar para cirurgias urgentes.

Os profissionais de saúde e demais trabalhadores destes grupos não foram esquecidos e foram tomadas diversas medidas de que são exemplo o teletrabalho com remuneração integralmente garantida, uma “Linha de Apoio ao Colaborador” para esclarecimento de questões clínicas e apoio psicológico, ou uma verba de um milhão de euros a ser distribuída pelos colaboradores afetos ao atendimento de doentes da pandemia.

E os Laboratórios de Análises Clínicas, estarão eles a praticar margens de lucro escandalosas nos testes PCR de deteção do vírus, “aproveitando a angústia das pessoas”?

Há vários centros de colheita, por todo o país, preparados exclusivamente para receber pessoas suspeitas de infeção SARS -Cov-2. Em alguns centros, cerca de 90% dos “doentes” são oriundos de unidades de cuidados de saúde primários e lares de idosos, sendo os restantes 10% encaminhados por hospitais públicos e privados.

Está em curso a abertura de mais centros de recolha, a pedido das Administrações Regionais de Saúde e várias Câmaras Municipais. No total, os laboratórios privados garantem 45% dos testes realizados em todo o país, cerca de 4.200 por dia.

Trabalham ininterruptamente 24 sobre 24 horas, 7 dias por semana. Com turnos de técnicos, biólogos moleculares e médicos patologistas, e com o apoio de outros colaboradores que se revezam. Estas pessoas auferem salários que, para serem pagos, têm obviamente que ser refletidos no custo do teste.

A esse custo acresce o preço dos reagentes – cuja escassez no mercado internacional tem causado atrasos e menor agilização dos resultados – que varia entre os 35 e os 40 euros (talvez seja daqui que nasça o “equívoco” …).

A colheita propriamente dita, os equipamentos de proteção individual (EPI), a esterilização necessária após cada teste, a amortização do equipamento, as despesas gerais (como luz e água) e os custos de deslocação (a lares e outras intuições), constituem a restante estrutura de custos que leva a um valor final entre os 90 e os 100€ – aquele que, genericamente, está a ser cobrado quer ao SNS quer ao utilizador final.

O SNS não tem capacidade plena, nem precisaria de ter, e terá seguramente uma estrutura de custos semelhante, assim ela seja calculada. O esforço destes laboratórios para chegar a muitos, em vários pontos do pais, depressa e sem margens abusivas é de registar, não de acusar.

Finalmente os farmacêuticos e as farmácias, esse extenso setor privado, muitas vezes esquecido, mas que cumpre um papel fundamental em toda esta crise. Estarão eles a fugir à sua responsabilidade?

A Rede de Farmácias Comunitárias tudo tem feito tudo para garantir, ao SNS e aos cidadãos, que não há descontinuidade terapêutica.

Foi criada uma Linha de Apoio aos Farmacêuticos, cujo atendimento é feito por mais de 20 farmacêuticos, alguns voluntários, e estudantes do 5º ano de Farmácia. Estas quase 3.000 chamadas por semana resolvem problemas relacionados com as normas da DGS e dúvidas que, de outra forma, iriam congestionar a linha SNS 24.

A Associação Nacional de Farmácias abriu uma linha telefónica gratuita (1400) para os portugueses poderem pedir a entrega, no domicílio, da sua medicação, assim permitindo que, sobretudo os mais idosos ou os doentes em quarentena, não saiam de casa, mas tenham os seus medicamentos entregues de acordo com as Boas Práticas de Distribuição Farmacêutica.

As várias organizações do setor – Ordem, Farmácias, Distribuidores, Indústria, mas também administradores hospitalares e farmacêuticos hospitalares – juntaram-se e mobilizaram-se para responder a 22 associações de doentes crónicos, que representam aqueles que têm de ir buscar medicação à farmácia hospitalar (de evitar neste momento).

Foi possível montar uma operação para entrega dessa medicação, de forma mais espaçada no tempo e na farmácia escolhida pelo doente, através da intervenção das 2.800 farmácias do país e que pode vir a abranger até 100.000 doentes. No Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e no Centro Hospitalar de Lisboa Central a complexa operação de entrega abrange já 12.000 doentes.

Hospitais privados, laboratórios e farmácias, todos seguem e cumprem as orientações da Direção Geral de Saúde (DGS), nenhum destes intervenientes pode ir além das atribuições que lhe são confiadas pela DGS nesta pandemia. E todos, nesse contexto, estão a contribuir para o melhor resultado de saúde para o país.

Portanto, este é o tempo favorável para perceber que há, sim, um Serviço Nacional de Saúde, estruturante e fundamental, construído no passado e que precisa de um futuro sólido, mas que há também um Sistema Nacional de Saúde, que o alarga, completa e densifica.

Porque quando, às nossas janelas, batemos palmas aos profissionais de saúde – para infinitamente agradecer – não me lembro de ser relevante distinguir os que cuidam no SNS dos que cuidam nos hospitais privados ou sociais, de diferenciar os que dentro do seu asfixiante EPI aplicam testes no SNS ou nos laboratórios protocolados, e não deixámos de fora quem, ao postigo, dispensa medicamentos e uma palavra de conforto.

Ainda acredito que, neste tempo, é possível aprendermos a unir em vez de dividir.