Ainda antes do erudito, iluminado e pela divina providência tocado, António Costa ter apelidado a Iniciativa Liberal de “Iniciativa Estatal”, já se lia e ouvia um pouco por aí, primeiro nas redes sociais e depois na opinião publicada, que os liberais falam muito sobre mercado livre, lucro, concorrência, liberdade individual, capitalismo, direitos inalienáveis, etc., mas quando a “coisa” dói e aperta, lá se colocam todos em fila indiana, quais socialistas, a pedirem apoios e subsídios ao Estado.

A já conhecida habilidade (e não é um elogio) de António Costa em construir narrativas políticas distorcidas teve, nesse momento, mais um episódio do seu cadastro de desviar atenções para evitar responder num normal processo de escrutínio democrático.

A habitual sonsice socialista.

Eu poderia argumentar o que muitos liberais consideram, que ser liberal não é ser anarquista e que, portanto, na sociedade que veem como ideal há lugar para o Estado. Mas esse Estado teria lugar específico, com atribuições claras e direccionadas e com uma dimensão reduzida, mas forte e consequente.

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Nesta linha de pensamento, esses mesmos liberais pretendem, dessa forma, desmontar o ataque de que são alvo pelos socialistas mais empedernidos, mostrando que em épocas de crise, se justifica a intervenção do Estado.

Importa dizer que, na verdade, não deveria causar perplexidade uma sociedade em que, em tempos ditos normais, fosse deixado ao indivíduo o máximo de liberdade e, em tempos de crise, fosse admissível uma maior intervenção de todos, da sociedade como um todo, num esforço conjunto, operacionalizado pelo Estado, e, naturalmente, executado pelo Governo.

Contudo, não creio que esta seja a resposta que deva ser dada à sonsice socialista, nem creio que este seja o melhor modelo de sociedade.

Como, então, desmontar o ataque básico, ainda que muito venerado, de que os liberais não passam de socialistas irreverentes que apenas prezam a liberdade individual porque é bonito, mas que invariavelmente recorrem ao Estado salvador?

A resposta é simples e directa: o Estado é que tomou a decisão de fechar a economia (empresas, famílias, escolas, etc.) criando uma crise sem precedentes. Então, terá que ser o Estado a resolver os problemas que ele próprio criou.

Imagine o leitor que tem uma quinta que se encontra no traçado de uma auto-estrada projectada. Se para si, nessa situação, o correcto, moral e ajustado seria o Estado expropriar tout court e avançar com a obra, então pode parar de ler o artigo. Se, por outro lado, entender que o direito à propriedade é um direito natural, que a mesma tem valor, e, se se pautar por um comportamento justo, então, defenderá que haja uma negociação com o proprietário do terreno para a cedência da área necessária. Ou seja, que se procure determinar o justo valor do terreno, tendo em conta a utilidade da obra, e se indemnize o proprietário por esse valor.

Imagine também que numa acção de uma qualquer autarquia são provocados danos em viaturas ou habitações e criados constrangimentos a negócios, impedindo os mesmos de laborar. Os mais sensatos de nós julgarão como certamente justo, que a Câmara Municipal ou a Junta de Freguesia repare os prejuízos causados pelas suas decisões e actuações.

Não me irei deter agora sobre qual a melhor resposta à pandemia, se o confinamento absoluto, se o confinamento selectivo ou vertical, ou até se nenhum tipo de confinamento. Certo é que a decisão de confinamento e, portanto, de encerramento da economia, foi tomada pelo Governo, em representação do Estado, isto é, em representação da sociedade.

Por este ponto de vista, é da mais elementar lógica, bom senso, justiça, e até ética, que o Estado se esforce para repristinar, isto é, tentar colocar a situação, o máximo possível, no ponto em que se encontrava antes de tomadas as suas decisões e acções.

Do ponto de vista ideológico, é importante notar que, caso o Estado não tivesse tido tamanha intervenção nos mercados e na economia e, ainda assim, em resultado do comportamento dinâmico e natural dos agentes económicos, os danos fossem grandes, então aí, já não seria defensável a intervenção estatal. Estaríamos perante um risco sistémico e, como tal, caberia aos responsáveis pelos negócios fazerem a sua análise, planeamento e mitigação do risco. Em períodos de expansão económica e prosperidade esses responsáveis deveriam prever e acautelar períodos de retracção e crise. Ou, quem escolhesse não o fazer, suportaria depois as consequências da sua inacção, não tendo legitimidade para exigir do Estado qualquer apoio. Diga-se que esse apoio naturalmente acabaria por ter que vir daqueles que se acautelaram, pelo que não seria justo nem correcto o indivíduo mais cauteloso pagar pelo mais ganancioso ou menos previdente. A eterna rábula da formiga e da cigarra.

Assim, simplificando e como regra geral, a intervenção do Estado deverá ser proporcional aos danos causados pela sua própria acção.

Depois de explicado o fundamento teórico para a intervenção do Estado, importa agora discorrer sobre qual o tipo de intervenção.

Se continuarmos com a premissa de que, de alguma forma, o Estado foi responsável pelos fortes constrangimentos causados aos agentes económicos, é lógico que a sua intervenção nunca poderá ser no sentido de pretender tomar posse das empresas, ou seja, nacionalizar. Se assim fosse, seria legítimo pensar que sempre que um Estado quisesse tomar conta da economia sem expropriar, bastaria criar um conjunto de dificuldades à mesma. Por outro lado, a intervenção pública também deverá ser, o mais possível, no sentido de dar autonomia aos agentes e não de impor medidas ou de criar pacotes de apoio aplicáveis com a exigência de muitas condicionantes. Assim, ao invés de dar, será recomendável não tirar. Em vez de manter a carga fiscal elevada e atribuir subsídios, ajudas, apoios, benesses e afins, será mais apropriado não tirar dos agentes económicos sob a forma de taxas, impostos e contribuições. Se as reduções ou benefícios fiscais forem transversais, como são, retiram-se obstáculos a todas as empresas e indivíduos de forma equitativa. Já quando se opta pela via do aumento da despesa, a atribuição de apoios por sectores de actividade e por grupos de interesse, fica o nível desses apoios à mercê do poder de lobbying e de quem vocifera mais alto, criando assim assimetrias artificiais e discricionárias no tecido económico.

É evidente que o tipo de acção que aqui defendo é, para qualquer governo socialista, sempre muito difícil, porque manter a carga fiscal ou até aumentá-la de formas mais ou menos ardilosas ou recorrer ao financiamento público através do défice e da dívida, permite atribuir discricionariamente os apoios e assim conquistar (comprar) votos nos sectores da sociedade potencialmente mais favoráveis. Dá-se aquilo a que chamo de ilusão fiscal. Os aumentos de impostos são dispersos por todos na mesma geração e pelas gerações futuras (quando se recorre a dívida) mitigando o seu impacto, e o benefício que é dado a determinado grupo é substancial e impactante. Para ilustrar esta situação imagine-se o seguinte exemplo teórico. Se se aumentar os impostos pagos por cada português em 1 euro por mês, consegue-se atribuir a um qualquer grupo de interesses apoios no montante de 120 milhões de euros. Ninguém irá reclamar pelo aumento de impostos de 1 euro por mês, mas já o sector que recebe os 120 milhões ficará bastante agradado e anunciará que o Governo foi muito importante na retoma da actividade.

É sempre mais ética para toda a comunidade a via do “não tirar” do que a de “dar”, por parte dos governos.

Nada do que foi dito, significa que não possam ser tomadas medidas mistas, do lado da receita, da despesa e do investimento, dada a severidade e complexidade da situação. Contudo a regra e premissa de base deverá ser a enunciada.

Espera-se competência de um Governo, que já se viu, ad nauseum, este não possuir. Impõe-se transparência, que já se percebeu, sobretudo durante a pandemia, ser atributo partilhado com outros governos e regimes socialistas como a Venezuela ou até agora na vizinha Espanha. Exige-se seriedade, que com tiradas como a da “Iniciativa Estatal”, se demonstra uma vez mais não existir. E quando alguém, sobretudo com anos de experiência governativa, não sabe ou não quer ser competente, transparente e sério, quem perde é o país, quem se lixa são os portugueses.