«Quando estou sozinha conto coisas bonitas a mim própria», disse-me uma paciente de setenta e oito anos, numa consulta de avaliação neuropsicológica — uma das áreas clínicas em que trabalho há vinte e cinco anos é a das demências e alterações cerebrais relacionadas com o envelhecimento. O motivo do pedido desta avaliação foi o agravamento súbito das dificuldades de memória que já vinha a sentir há algum tempo. Mas em poucos dias, contou, estava mais esquecida, com dificuldade em compreender o que se passava à sua volta. Viúva há dez anos, vivia há cinco com apoio de cuidadoras formais, contratadas através de uma empresa, após uma doença oncológica que a deixara limitada na sua autonomia. Até Março de 2020 recebia a família para o almoço de sábado, e ainda era ela quem fazia o bolo preferido dos dois netos que pernoitavam para que os pais continuassem a ter uma noite só para eles. E havia a visita das amigas de uma vida com quem conversava. Sobre os filhos quando eram pequenos, os tempos no colégio onde havia leccionado, as recordações deste e daquele aluno, as férias feitas em conjunto, a graça dos netos. As memórias trocavam-se como cromos às vezes repetidos – ninguém se importava.

Março trouxe com o confinamento, a dificuldade em aceitar o mundo que se fechava sem aviso. O polícia que, a maus modos, mandara uma senhora com mais idade do que a sua para casa e o outro a enxotar pessoas do banco do jardim. Vira na televisão. «Que autoritarismo é este? Fala-se assim com as pessoas?» E Março trouxe a solidão sem netos. A cuidadora assegurava o contacto com o exterior. Com a cara tapada, luvas para tudo e mais alguma coisa, sem passeios pela rua nem um beijinho à chegada. A distância das amigas aumentou à medida que a dificuldade em ouvir transformava os telefonemas numa sequência de diz, repete lá, não percebi, este telefone não se ouve bem, fala mais alto. Não, não pus o aparelho, faz-me muita confusão à cabeça.

O tempo em casa, o silêncio da chávena de chá deixada na mesa ao seu lado pela cuidadora antes de sair. A cidade a perder a nitidez. Como a memória.

Dois meses de isolamento total seguidos de um tempo de indeterminação sem fim à vista. A vida que se tem não é a vida que se conheceu. Nem o mundo semi-aberto é o mesmo. É pior. Os miúdos regressaram à escola, os pais ao trabalho, mas não à casa da avó. «Para me proteger. Mas quantos anos é que eu vou viver? Estes são os meus últimos anos.»

É sabido que um dos factores que contribui para o envelhecimento saudável é a manutenção das relações sociais. A conversação, por exemplo, envolve uma complexidade de competências como a memória, atenção, raciocínio, linguagem, consciência social. As relações sociais estimulam a actividade cerebral.

Vivemos tempos contraditórios: o que faz bem, faz-nos mal. Isto confunde. Tira a solidez ao chão. E nem há como nem com quem criar as histórias bonitas que nos poderemos um dia contar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR