Na tarde de 23 de agosto foi noticiada a morte de Yevgeny Viktorovich Prigozhin. Um vídeo apresentado nas televisões, e tomado como credível, mostrava o que se supunha ser um avião em queda. Ao longe aquele “ponto” irregular precipitava-se dos céus num vórtice de desfecho inescapável. Não planava. Apenas caía submisso à gravidade e resistência do ar.
A causa deste acontecimento não é difícil de perscrutar no passado recente do grupo Wagner e guerra na Ucrânia. Por muito rebuscadas que as teorias da conspiração possam parecer, e há sempre quem se esforce com uma mente fervilhante, as implicações do Kremlin pareceram óbvias desde o primeiro momento.
Num segundo momento, no dia seguinte, quando Vladimir Putin lamentou o acidente e descreveu Prigozhin como “um talentoso que tinha cometido erros graves”, logo toda a comunicação social, e digo toda porque não li ou ouvi opinião contrária que não fosse “os culpados são a CIA, os Ucranianos, os Africanos, os Marcianos, etc”, surgiu num arrazoado de acusações a Putin e à forma como este, aos olhos do Ocidente, mentia despudoradamente.
“Mundus vult decipi, ergo decipiatur” – o mundo quer ser enganado, então, que se engane! – é uma expressão de Publio Petronio que sublinha o cinismo com que as “massas” se dispõem a aceitar o que lhes é dito. E aceitam-no, não porque sejam verdades evidentes, mas porque se alinham com o senso comum e o entendimento que têm do mundo – “uma verdade é o que podemos fazer com uma mentira”.
A forma como o Ocidente observa a guerra na Ucrânia e lê o zeitgeist russo destina-se a alimentar a esperança de que algures no tempo possa ocorrer uma convulsão e, no rescaldo dessa emergência, surja uma liderança que reconheça as atrocidades e nesse exercício de genuflexão peça perdão aos ofendidos e ao mundo.
O mundo ocidental está embrenhado numa cultura cristã de piedade. Esta é a nossa moral gregária. Claro que há franjas no espectro sociopolítico que não correspondem ao nosso modo de ser, mas estas são minorias que veem em Robspierre e Jean-Paul Marat os “influencers” dos nossos dias. Ao sermos racionais e piedosos, achamos que “os outros” têm a obrigação de assim ser, ou pelo menos têm essa possibilidade se lhes for dada a devida oportunidade. Porém, estamos enganados! As coisas não são assim tão simples. Durante séculos o comportamento russo foi moldado de forma diferente, afastou-se de nós. A ortodoxia, a geografia e as constantes invasões forjaram um sentido de unidade. Deram-lhe um inimigo, e esse inimigo somos nós.
“A Ucrânia”
Aquela imensa massa geográfica que se estende das planícies a norte do Danúbio até ao Oceano Pacífico teve na região de Kiev um dos mais importantes berçários da civilização. A região do Dnipro, a par dos deltas do Nilo e o do Tigre e Eufrates, foram os berçários da nossa civilização. O “mega agregado de Kiev”, e é assim que é conhecido, surgiu eventualmente entre o fim do paleolítico superior e o neolítico e é eventualmente o mais antigo dos três. Caracterizado por terras negras de grande fertilidade, foi uma geografia cobiçada por muitos e por isso sujeita a pilhagens e invasões. Não foi assim estranho que os locais tentassem obter proteção junto dos invasores mais convenientes. Os Varegues (Vikings), povo do norte da europa foram os escolhidos, e o seu príncipe Rurik fundou a dinastia Ruríquida que até 1598, início da era dos Romanov, governou territórios que agora são parte integrante da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia. Esse território era no século X conhecido como a “Rus(ia) de Kiev”, termo usado por Constantino VII quando se referia aos habitantes da terra dos Rus.
Esse imenso território, se do lado oriental tinha limites geográficos que até 1904 (guerra Russo-Japonesa) pareciam intransponíveis, do lado ocidental, tinha uma permeabilidade muito mais tentadora às invasões e pilhagens, quase sempre vindas de sul ou de noroeste. Destas invasões, as acometidas mongóis do século XIII são as mais importantes porque a sua presença perdurou durante cerca de 250 anos (1237-1480). Na altura Kiev foi invadida e saqueada, o que levou a que o centro político da dinastia Rurique se deslocasse para a região de Moscovo e Novgorod. Da invasão mongol resultaram três consequências importantes. Ocorreu uma transferência do centro político e a existência de um inimigo comum aos príncipes Ruriques forjou as alianças necessárias à constituição de um estado. Para além destas duas consequências, uma terceira, e não menos importante, resultou da influência e impregnação da cultura oriental no mundo ortodoxo. Da presença de um inimigo comum, e da partilha cultural forjaram-se as características do povo russo – as necessidades de segurança, defesa contra um inimigo externo e entrega a uma autoridade vertical capaz de responder aos constantes desafios – ainda visíveis nos dias de hoje.
Se os dois últimos aspectos são importantes para se compreender o conceito de “Mãe Rússia”, uma mãe que olha por todos os filhos independentemente dos arquétipos e paternidade, o primeiro, a deslocalização do centro social e político para Oriente, deixou que essas terras, hoje ocupadas pela Ucrânia e Bielorrússia, ficassem mais permeáveis às investidas dos povos ocidentais.
Desde 1240, altura em que Kiev foi dominada pelos Mongóis, não teve mais (leia-se, até à dissolução da URSS) uma existência enquanto território autónomo. Durante estes séculos, e em especial após a expulsão dos Mongóis, o actual território ucraniano foi palco permanente de disputas entre a Rússia a oriente e Polacos, Lituanos e Suecos a noroeste. Foi uma zona de conflito permanente entre duas culturas, uma ocidental, iluminista e católica, e uma outra autocrática, tirana e ortodoxa.
Nikolai Gogol, no seu romance “Tarass Bulba”, conta-nos as aventuras de um coronel cossaco numa história situada algures pelo século XVII. Na descrição das suas diatribes, retrata-nos a vida daquelas gentes. Viviam para a guerra. Toda a linhagem masculina da família tinha como único objectivo preparem-se para a guerra. Mas contra quem? Isso não importava! Seria sempre contra o inimigo que estivesse “mais à mão de semear”. Podia ser contra os Otomanos, contra os Polacos, Suecos ou Lituanos. À míngua destes podiam sempre ser encontrados alguns cristãos ou judeus que, à falta de melhor, dava bem para entreter as hostes no intervalo das cavalgadas e grandes bebedeiras. Tinham instituições políticas e um estado embrionário situado no “Sich Zaporizhian”, onde reunia a Rada, embrião da Duma ucraniana. Esta descrição que Nikolai Gogol nos faz dos cossacos é de um estado de luta permanente contra tudo e contra todos, mas nunca contra os russos. Eles viam-se russos, sentiam-se russos, aliás, o próprio Gogol nasceu numa aldeia cossaca, algures no que agora é território ucraniano e que à época ele considerava como a sua “pequena róssia”.
Num outro livro, “Ucrânia: O que toda a Gente Precisa de Saber”, Serhy Yekelchyk tenta mostrar a Ucrânia como um território com líderes e uma alta cultura capaz de uma nacionalidade, se para isso tivesse tido oportunidade. Acontece que esses líderes, os Hétmanes e os seus cossacos actuaram sempre como bandos de saqueadores e nunca como agentes de um sentimento de nacionalidade. Tinham igrejas, mosteiros, patriarcado, língua, folclore, etc, tudo estruturas que o povo ia edificando, mas sem a intelectualidade necessária esse conjunto nunca passou de uma manta de retalhos. E muitos são os “heróis” de que a sua história reza.
Tiveram Bogodan Khmelnitski, que na revolta de “Chmielnicki” lutou contra os polacos e formou um estado independente que poucos anos depois acabou como um protetorado do Czar. Em sentido inverso tiveram Ivan Mazepa, um líder cossaco, súbdito leal do Czar que após um diferendo com este pôs os seus homens ao serviço do exército polaco-sueco.
No início do século XX tiveram um outro “herói” nacional, Nestor Makhno, um anarquista que em 1918 se aliou ao exército vermelho para combater o exército branco czarista. Em 1941, tiveram Stefan Bandera, outro “notável” que combateu as tropas soviéticas ao lado dos alemães, e cuja acção não deve ser vista como uma luta por uma independência pró-fascista, mas antes como uma luta de libertação do jugo comunista – o Holodomor, ou grande fome ucraniana, estava ainda bem fresco na memória coletiva.
A região que atualmente corresponde à Ucrânia nunca foi um território independente. Após três séculos de domínio Otomano, foi um território disputado por lituanos, polacos, tártaros, suecos, russos, turcos, austro-húngaros, etc. Foi disputado pela riqueza das suas terras, e nos últimos anos pelos recursos energéticos, minerais e posicionamento geográfico. Neste carrocel de ocupação, os novos inquilinos nunca desalojaram totalmente os predecessores, e do conjunto de invasores, residentes, e novos colonos importados para ocupar aquela imensidão (judeus, gregos, germânicos, polacos, oriundos dos Balcãs, menonitas, etc), resultou a paleta de etnias que povoam e reclamam aquele território.
A actual Ucrânia, tal como o seu nome significa – fronteira –, é uma região de confronto entre três civilizações que infelizmente não tiveram na geografia o suporte necessário às suas diferenças. O lado ocidental, a Galícia, mais europeizada, reflete mais a influencia da cultura ocidental, enquanto o lado oriental segue predominantemente uma cultura russófila. A separar estas duas regiões temos o rio Dnipro. Porém, este é uma fraca fronteira para tão grandes diferenças.
O assumir da região – Ucrânia – como fronteira entre o mundo ocidental e o mundo russo foi objectivo político da totalidade dos presidentes Ucranianos que após a queda do muro de Berlin e a dissolução da URSS sempre tentaram um equilíbrio entre estes dois mundos. Leonid Kravchuk, Leonid Kuchma, Victor Yushchenko, Viktor Yanukovych, Oleksandr Turchynov, Petro Poroshenko e Vlodymyr Zelensky foram presidentes, e todos tentaram implementar uma política de fronteira como forma de garantir a sobrevivência da nação e integridade territorial.
Mesmo Vlodymyr Zelensky antes de 24 de fevereiro de 2022 tentou apaziguar as ânsias russas, declarando que qualquer abertura ao ocidente não significava uma menorização da sua ligação histórica à grande Rússia. Vlodymyr Zelensky tinha esta postura de apaziguamento e já a Crimeia estava anexada e no Donbass o movimento separatista tinha atingido o seu auge.
Putin tinha razão quando antes da invasão dizia que a Ucrânia não existia enquanto nação. Não existia, mas agora existe e tem dois progenitores, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky. Ambos podem reclamar terem finalizado o que quase 700 anos de história de muitas lutas e invasões não deixaram determinar.
“As Botas de Putin”
Giuliano Da Empoli, no seu livro “O Mago do Kremlin”, descreve-nos em pinceladas largas a Rússia actual. Neste relato, o autor justifica esta Rússia com as suas raízes culturais e imperiais, o que para a história vai ficar como o IV Império, o da era Putin.
Sendo Da Empoli um político italiano, especialista na história e origem do populismo, e tendo exercido os cargos de conselheiro do primeiro-ministro italiano Matteo Renzi e do ministro da cultura Francesco Rutelli, encontra-se bem posicionado para interpretar a história da Rússia recente. Esta é-nos contada pela palavra de Vadim Baranov que, no contexto do livro, nos é apresentado como o conselheiro de Putin, desde a sua ascensão de funcionário do FSB até ao terceiro mandato de presidente da Rússia. Esta personagem, Vadim Baranov, apesar de ficcionada tem apego à realidade e corresponde a Vladislav Surkov, o efetivo conselheiro de Putin desde a sua apresentação como putativo primeiro-ministro em 1999, até 2020 altura em que foi colocado em prisão domiciliária com a acusação de “desvio de fundos”.
Vadim Baranov é a única personagem ficcionada nesta novela, ainda que nessa condição surja como um avatar de alguém bem real, alguém que na história recente da Rússia ficou conhecido como a “Eminência Parda” do regime, o “Rasputine do Kremlin”. Todas as restantes personagens que surgem ao longo do texto são introduzidas pelo seu nome real, o que transporta este texto do campo da ficção para o de uma biografia não autorizada de Vladislav Surkov e a forma como este assistiu (observou e colaborou) a Vladimir Putin no poder.
O quase monólogo ”O Mago do Kremlin” inicia-se com a apresentação de uma carta de Yevgeny Zamyatin, o autor de “Nós”, dirigida a Iossif Vissarinovitch (Stalin), solicitando-lhe uma comutação de pena. Impedido de escrever por delito de opinião, Zamyatin reconhece nesta carta todos os seus erros – a desilusão com o regime dos sovietes –, mas reafirmando que o seu “pecado” só surgiu porque agiu segundo a sua razão e o livre arbítrio. Neste acto de contrição solicita ao chefe supremo, que não condena nem deixa de reconhecer, que lhe permita retomar a actividade de escritor. Para Zamyatin ser condenado a não escrever era o equivalente a uma pena de morte.
Este texto é introduzido pelo nosso narrador como um exemplo de alguém que não se arrepende das suas ações mas que reconhece que depois de assumidas têm de ter consequências. É alguém que implora por clemência, e ao fazê-lo reconhece também a autoridade de quem pode decidir sobre a sua vida. É um pedido de indulgência, não é um libelo ignóbil de arrependimento.
Este pedido de clemência é importante porque posteriormente vamos ser confrontados com a história – verídica – de um exilado russo, Boris Berezovsky, um amigo íntimo de Putin, alguém que muito contribuiu para ascensão de Putin, mas que ao ver-se fora da “corte do poder” caiu no logro de se voltar contra o regime e o sistema que lhe tinha permitido “aferrolhar” a colossal fortuna. Em desgraça constituiu um partido político, foi opositor de Putin. Acabou fugindo da Rússia e no exílio escreveu uma carta a Putin. Da Empoli usa estas histórias para realçar as diferença entre quem não se arrepende das opções que tomou e quem verdadeiramente não se arrependendo das mesmas se humilha e rasteja julgando que com isso poderá de alguma forma recuperar o lugar entre o séquito e reaver o estatuto. Em 23 de Março de 2013 Boris Berezovsky “enforca-se” no seu apartamento de Londres.
As diferenças nas atitudes de Zamyatin e de Boris Berezovsky são importantes para se compreender a posição de Putin com o “pronunciamento” de Prigozhin. Putin até poderia partilhar algumas das motivações subjacentes, mas as ações de Prigozhin, e em especial esta última, tinham colocado Putin num dilema entre a estima ao amigo e o que era intolerável para o estado Russo – tinha de optar entre o “sangue e a polis”.
Escolher entre duas opções igualmente negativas é o âmago do poder. E quando a escolha é feita, esta não tem de ser expressa – é intuída por aqueles que compõem o círculo mais íntimo do poder e a executam. Líder não é aquele que dá ordens. Líder é aquele que orienta como quer que as pessoas pensem e procedam. É por isso que quem nas palavras de Putin – “lamentar o sucedido e descrever Prigozhin como um talentoso que tinha cometido erros graves” – vê mentira e hipocrisia, não entende nada da realidade russa, nem dos meandros do poder absoluto.
Giuliano Da Empoli apresenta-nos o seu narrador, Vadim Baranov, num exílio forçado perto de Moscovo, naquela que era a casa de família. Aí, na biblioteca, entre inúmeros livros na maioria de autores franceses, Vadia, era assim que era conhecido pelos amigos, inicia o seu monólogo fazendo a apresentação do depósito cultural aí sedimentado e de que forma este influenciou a vida e o modo de pensar dos antepassados que o mais marcaram. O seu avô e o seu pai.
Dois homens com personalidade diferente e que o autor utiliza para enquadrar a história mais recente da Rússia. O seu avô, um aristocrata, de fino humor, que tinha assistido à construção do estado soviético, sem nunca nele ter participado, mas tendo sempre a argúcia necessária para evitar as armadilhas que inevitavelmente lhe surgiram no caminho. O seu avô tinha escapado “por entre pingos da chuva” ao regime dos Gulags e, como Estaline, amava a floresta e sentia um enorme fascínio pelos lobos. Era um caçador exímio e por isso conhecido como um poeta no meio de lobos.
O seu pai tinha uma personalidade muito diferente. Era um homem do partido, um “apparatchik”. Apesar de as diferenças políticas entre avô e pai não poderem ser maiores, em certos aspectos eram curiosamente personalidades muito semelhantes. Ambos eram aristocratas. O seu pai era um membro destacado do PCUS, mas também um aristocrata. Era alguém para quem o dinheiro não contava, pois o que podia comprar eram bens e mordomias a que se tinha direito por filiação. Não há assim grande diferença entre o regime aristocrata dos Czares e o do tempo dos Sovietes. E foi no meio desta aristocracia que Vadim Baranov cresceu.
A Rússia nunca deixou de ser aristocrática. Durante o final do consulado de Gorbachev e os anos loucos de Boris Yeltsin, a Rússia atravessou um período experimental de neoliberalismo, de capitalismo selvagem. O ocidente viu-o como uma abertura à democracia, mas apenas resultou no maior saque de riquezas a que uma Rússia humilhada alguma vez tinha assistido.
Enquanto as economias ocidentais iam ocupando esse vazio, e porque necessitavam de testas de ferro que conhecessem o terreno, essa classe de vândalos e oligarcas foi-se constituindo e adquiriu mordomias que julgava serem suas. Era uma altura em que telemóveis tocavam e eram atendidos durante um espetáculo no teatro Bolshoi – impensável! Tinha-se perdido o respeito pela história da nação, pelas suas riquezas e características culturais. O ocidente viu a ameaça, mas viu nela uma oportunidade para maximizar os seus lucros. Para além do saque, a teia ocidental que cobria a sociedade russa foi lentamente acompanhada com a intromissão de causas fraturantes que, aos olhos dos russos, um ocidente decadente gostava de cultivar.
O povo russo não gostava. Não gostava de ver a sua história ridicularizada por estrangeirados que tinham estudado em elegantes universidades estrangeiras, e que se achavam os portadores de um iluminismo neoliberal do século XXI. Não gostava o povo russo, não gostava a sua aristocracia czarista e comunista, não gostava o grupo de homens que liderava o FSB.
Foi neste caldo que Vladimir Putin emergiu. Oriundo da contra-espionagem, via no ocidente e nas suas ameaças um factor de destruição da unidade territorial que ao longo de séculos os vários Czares tinham contruído. Vladimir Putin estava agora no poder, no comando, e tinha a responsabilidade de não deixar a sua Rússia resvalar para as armadilhas do ocidente. Não havia uma terceira alternativa. Ou se estava com ele e com o povo russo, ou se estava contra ambos. O povo russo tinha conhecido há menos de cem anos uma guerra civil, e via nos anos de Yeltsin, anos de insegurança, anos de rastilho para o desmembramento territorial da Rússia, o risco de uma nova guerra civil. E se algo há que o povo apoia cegamente é o sentimento de autoridade, uma autoridade que lhe dê segurança e estabilidade. Não importa o quanto autocrática seja, o importante é que garanta segurança e estabilidade.
Durante o consulado de Putin os oligarcas como Prigozhin continuaram a crescer e a prosperar. De alguma forma protegidos num terreno favorável. Mas esta proteção não deve ser vista como uma opção económica ou social sequer. É uma estratégia em que oligarcas são “criados” pelo regime como perus de Natal. “Engordam”, “incham” na sua pesporrência, mas mais não servem do que para serem “trinchados” e servidos apetitosamente à população sempre que é preciso apelar ao nacionalismo patriótico ou relevar a autoridade do Kremlin.
Segundo Da Empoli, Vladimir Putin leu bem o seu povo e soube rodear-se de homens que tinham a mesma leitura do futuro e não tinham escrúpulos em cumprir a sua vontade. É assim que surge Vladislav Surkov (aqui ficcionado como Vadim Baranov). Alguém que vindo do “quarto poder” sabia como o usar para os objectivos principais do consulado de Putin – a coesão e engrandecimento territorial da nação Russa, o afastamento progressivo da cultura ocidental e do iluminismo.
Este protagonista da realidade, conhecido como o “Rasputine” do Kremlin esteve nos principais momentos de afirmação da independência e não ocidentalização do território e cultura russa. Esteve na luta da Chechénia, foi o responsável pela solução Ramzan Kadyrov, pela resolução da “Revolução Rosa” na Geórgia, pela organização dos Jogos Olímpicos de Sochi. Foi responsável pela constituição e conceito do grupo Wagner, pela estratégia de ocupação da Crimeia, pela organização da luta no Donbass ucraniano. Responsável pelo conceito “não há Ucrânia”, pelo conceito de “Soberania Democrática” que tentou implementar na Rússia de Putin, alimentando e alienando todos os extremistas – comunistas, vanguardistas, nazis, vândalos tribais. Só deixou de fora desta miscelânea de apoios políticos aqueles que defendiam conceitos e causas conotadas com o ocidente. E deu corpo a todas estas políticas, não porque tivesse ordens expressas do “Czar”, mas porque pressentia nas entrelinhas que estes eram os seus desígnios e vontades. Desígnios e vontades que o “Czar do IV império” nunca verbalizava limitando-se apenas a deixar que lhe intuíssem os pensamentos.
“A verdade dos outros está nas sua botas. Não a podemos entender sem as calçarmos primeiro.”