A ideia de proporcionar aos menores uma justiça distinta da dos adultos nasceu das legislações estaduais do Massachusetts (1874) e de Nova Iorque (1892). Em 1899 foi criado em Chicago, no Illinois, o primeiro Tribunal de Menores, através da publicação do «Act to Regulate the Treatment and. Control of Dependent, Neglected, and Delinquent Children». Aquele Tribunal serviu de modelo para que, não apenas nos EUA, mas igualmente na Europa, surgissem modelos de justiça que diferenciassem a dos adultos da dos menores.
Todavia, chegados quase ao primeiro quartel do século XXI, ainda não temos na Europa um modelo de justiça que seja suficientemente protetor das crianças, modelo esse em que elas sejam ouvidas e as suas vontades levadas em conta.
Para inverter tal desamparo judicial, a Comissão Europeia planeia apresentar uma «Recomendação» sobre sistemas de proteção infantil, nesse sentido decorreu, até 20 de outubro último, um processo de consulta pública aberta à sociedade civil dos Estados-membros, às organizações internacionais e, especialmente, às crianças. O objetivo era o de compreender como é que a União Europeia poderia reforçar os sistemas de proteção infantil, conhecendo melhor as necessidades de proteção das crianças, a fim de promover uma abordagem mais integrada.
Os números de violência sobre crianças na Europa são assustadores: 44 milhões sofrem abusos físicos e 55 milhões sofrem abusos psicológicos. Uma em cada cinco crianças é vítima de alguma forma de violência sexual, constituindo um quarto das vítimas do tráfico de seres humanos. Perante semelhante flagelo de milhões de crianças, a Comissão Europeia, em linha com os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, explicará aos Estados-membros a necessidade de adotarem um sistema de proteção integrado que garanta que todos os intervenientes e serviços públicos (saúde, educação, justiça, serviços sociais, etc.) atuem em conjunto para prevenir o abuso, a exploração e qualquer outra forma de violência contra menores, sem esquecer a que é propagada pela internet.
A abordagem que se faz sobre o sistema de justiça da União Europeia conduz-nos diretamente à importantíssima questão de saber até que ponto as crianças devem participar no processo de tomada de decisões que as afeta. Por outras palavras: devem ou não os menores e as suas famílias ser ouvidos nos tribunais, nas autarquias, nos parlamentos nacionais ou até no próprio Parlamento Europeu? E os procedimentos judiciais estão suficientemente adaptados à idade desses menores? E como podem eles apresentar queixas contra os progenitores ou contra os tutores? E essas queixas são suscetíveis de ser levadas a sério?
As crianças não podem, nem sabem defender-se, seja por razões de pouca idade (não sabem apresentar queixa, embora haja para tanto representantes legais), seja por falta de autodeterminação (mesmo que tenham 16 anos) em apresentarem queixa-crime contra as mães ou os pais que as agridem.
O acesso à justiça é um direito humano, e é também a justiça que permite que outros direitos humanos se tornem uma realidade. E para que os direitos das crianças não se transformem em mera promissão, tem de haver uma forma de esses mesmos direitos serem cumpridos, o que significa que elas, ou os seus defensores, sejam capazes de usar e, sobretudo, de confiar num sistema legal que as proteja. O sistema jurídico tem de proporcionar-lhes meios para que possam obter uma resposta rápida, eficaz e justa que zele pelos seus direitos. A importância de aceder à justiça e de beneficiar de um processo transparente, eficiente e responsável, aplica-se igualmente a adultos, mas os direitos das crianças, nesta área, têm sido sempre negligenciados e ignorados.
A estratégia da União Europeia é de cortar radicalmente com o presente, criando melhores leis, melhores juízes, melhores advogados e melhores polícias. Daí despontará uma justiça adaptada aos menores, sejam eles vítimas, sejam eles testemunhas, sejam eles suspeitos ou sejam eles, enfim, acusados de terem cometido crimes. Os Estados-membros são instados a apoiar e a promover alternativas à ação judicial, tais como à pena de prisão, optando-se sempre, em caso de delitos de jovens, por medidas não detentivas e pelo arquivamento dos autos por Acordos-Sentença (negociação da sanção entre o Defensor e o Ministério Público, prescindindo-se da fase de julgamento).
Mas nem só com a justiça se protege as crianças. A Comissão ambiciona uma «Garantia Europeia para a Criança», com o fim de combater a pobreza infantil e a exclusão social. Essa Garantia contemplará o acesso à educação e a cuidados no desenvolvimento infantil; a atividades extracurriculares; a pelo menos uma refeição saudável por dia letivo; e a cuidados de saúde, habitação adequada e alimentação saudável.
Tarefa indubitavelmente de monta, mas os direitos das crianças não podem ficar apenas por promessas de felicidade.