Nas últimas décadas, várias gerações de portugueses aprenderam a ler com Alice Vieira. Os seus livros infantis estão carregados de subtilezas que nos ensinam a interpretar e, nessa medida, a compreender as complexidades e as perplexidades da vida – sem enveredar pelo imediatismo fácil das escritas recentes que têm como objetivo declarado educar para um sentido político específico. É a partir desta aprendizagem que ganhamos balanço para a grande literatura, que se debruça sobre a natureza humana, a angústia da existência, os mitos que nos constroem. A grande literatura permite conhecermo-nos melhor e pode, por isso, tornar-nos mais sensíveis à nossa incuriosidade face ao sofrimento do outro, como diz Richard Rorty em Contingência, Ironia e Solidariedade.

Rorty avalia essa dimensão da literatura usando a passagem do barbeiro em Lolita, que Vladimir Nabokov afirma ter-lhe custado um mês de trabalho:

“Em Kasbeam, um barbeiro muito velho fez-me um medíocre corte de cabelo: fez conversa fiada sobre o filho que jogava basebol e, a cada interlocução, cuspia-me no pescoço e de vez em quando limpava os óculos no meu babete, ou interrompia a tesoura que manejava estremecidamente para mostrar recortes desbotados de jornal, e eu estava de tal maneira distraído que fiquei chocado quando percebi, apontando ele para uma fotografia emoldurada por entre os obsoletos champôs pardos, que o jovem atleta de bigode morrera há trinta anos.”

É uma passagem que pode facilmente escapar ao leitor, o que levou Nabokov a chamar a atenção para ela no posfácio, considerando-a um dos “nervos do romance”. Para Rorty, é nesse momento que somos verdadeiramente interpelados:

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“vem à ideia do leitor que ele próprio foi tão desatento a essa frase que custou um mês e a esse filho de bigode morto como Nabokov suspeitou que iria ser. O leitor, que assim se revela a si próprio subitamente como, se não hipócrita, pelo menos cruelmente incurioso, reconhece o seu semelhante, o seu irmão em Humbert e em Kinbote. Subitamente, Lolita tem uma “moral”.”

Enquanto não chegamos a Lolita, aprendemos com a pequena literatura a conhecer outros lugares e outros momentos e desenvolvemos gradualmente empatia e capacidade de reconhecimento. É o que acontece com Às dez a porta fecha,  cuja história se desenrola num lar de idosos, a Casa da Chaminé, onde cada personagem embrulha o seu passado numa veladura especial:

“A Casa da Chaminé era assim como um muro que separava dois mundos. (…) Quem vinha para ali, era para ali ficar. O resto pertencia a outra história que, por qualquer razão, ninguém queria recordar. Ou recordava apenas de uma maneira muito especial, inventando para esse tempo, há tanto passado, cores de glória que ele nunca tivera.”

Alice Vieira publica este livro em 1988 quando a inversão da pirâmide etária ainda não era uma preocupação política: a população com mais de 65 anos correspondia a pouco mais de 13% e o grupo etário mais novo a cerca de 20%. Mas é precisamente a partir dessa década que a inversão começa a escalar até chegarmos aos valores provisórios do Censos de 2021: os que têm mais de 65 anos correspondem agora a 23,4% da população e os menores de 14 anos a apenas 12,9%.

Esta inversão é muitas vezes invocada para referir o desafio da sustentabilidade dos mecanismos de segurança social, numa perspetiva utilitarista dos jovens como meio de sustento dos mais velhos, e as complexas políticas públicas que poderiam resolver esse desafio. Mas o problema é muito mais profundo do que esse: o crescimento contínuo de uma parte da população que requer cuidados e acompanhamento permanentes coloca problemas de tal modo complicados que deveria despertar uma atenção social generalizada. Se não, vejamos.

De acordo com números de 2015, os homens e as mulheres com 65 anos na Europa podem estimar viver mais 18 e 21 anos, respetivamente – alcançando uma esperança média de vida nunca antes registada. Mas se alterarmos esta previsão por forma a considerar esperança de anos de vida saudável, o valor cai para os 9 anos para os dois sexos. Isto significa mais de dez anos em condição de necessidade de apoio permanente. E não tenhamos ilusões: com as dinâmicas familiares e laborais atuais, e o envelhecimento dos próprios filhos, não é possível esperar que esse cuidado seja dado em casa.

Que soluções estão pensadas em Portugal para este desafio, considerando que a quarta idade (acima dos 80 anos) cobre já mais de 600 mil pessoas e este número continuará a crescer? Reduziremos a solução à eutanásia, como Alexandre Quintanilha parece sugerir?

O estado atual de coisas já não garante resposta a todas as necessidades. Aqueles que tiveram um idoso a seu cargo e se viram perante a incapacidade de dar uma resposta adequada sabem da dificuldade em encontrar vagas em lares, das longas listas de espera, dos lares ilegais, dos pedidos de “contribuição”, da solicitação de registos prediais, de preços exorbitantes para a maioria das famílias. A dolorosa tarefa dos filhos torna-se a mais pungente das experiências.

No recente episódio de E o resto é história motivado pelo dia da criança, João Miguel Tavares e Rui Ramos debruçam-se sobre a invenção da infância como construção da época contemporânea. Foi apenas recentemente que se inventou um lugar específico para os mais novos, com o reconhecimento de um estatuto próprio e de privilégios específicos. Essa mudança aconteceu nos últimos dois séculos e foi resultado de fatores teóricos (pensemos em Jean-Jacques Rousseau e Sigmund Freud), mas sobretudo científicos. O desenvolvimento da medicina e da farmacologia – a nova medicina – permitiu criar condições sanitárias únicas, que garantiram a proteção e a sobrevivência dos mais novos.

Do outro lado do espectro, as mesmas condições científicas têm permitido prolongar o tempo de vida dos mais velhos com uma expressão inédita. Paradoxalmente, esse prolongamento faz-nos regressar à condição de criança. Precisamos de ajuda para nos movermos, para nos alimentarmos, para tomarmos banho e usarmos a casa de banho. Ouvimos ralhetes por não comermos em condições. E recordamos com dificuldade a cara dos mais próximos, vendo nos filhos o marido já morto e nas filhas as irmãs mais velhas. Confundimos quase sempre aqueles que aparecem com aqueles que já partiram. E se da primeira neta nunca se esquece (afinal, foi a primeira e cantava entre as cordas de secar a roupa), com os outros a tarefa torna-se mais difícil e os bisnetos parecem todos iguais. Voltamos, acima de tudo, a entrar no mundo em que as palavras faltam, com o medo que Alice Vieira captou:

“ – Trouxemos-lhe umas bolachinhas, uma compota… Pode ser que lhe apeteça… – disse o rapaz, sem saber o que mais havia de dizer. Nunca fora capaz de conversar com velhos. Faziam-lhe impressão. Impressão ou medo. Medo de um dia ser ele a estar ali nas mesmas condições, e com outros, como ele agora, olhando-o sem saberem o que dizer, sentados à beira da sua cama.”

Tal como se inventou a infância a partir do século XVIII, parece faltar hoje inventar a velha infância.