Vejo todos a minha volta preocupados e ansiosos com o vírus. E ainda bem, porque é perigoso e já ceifou muitas vidas; quanto melhor seguirmos as instruções de quem sabe e manda, melhor controlamos os efeitos nefastos. Como tudo na vida, fazemos o que está ao nosso alcance, porque depois… Deus faz o resto.
Também me encontro em quarentena, em Mumbai, e agora posso fazer coisas que desejava e para as quais me faltava disposição e tranquilidade para ficar sentado a pensar, a ler e a escrever.
Estive há poucos dias, com um grande grupo de estudantes portugueses do Executive MBA, na sua Semana Internacional na Índia, no Indian Institute of Management de Ahmedabad, classificado como a Escola de Negócios n.º1 da Índia.
A semana, além da componente académica, integrava colóquios com empresários locais e visitas a empresas e focos de cultura. Uma das visitas foi à sede da Federação das Cooperativas para a comercialização do leite, em Anand (Gujarate). O movimento cooperativo começou por ser um protesto dos agricultores contra os opressores, em 1946. Teve o vigoroso impulso do Dr. Verguese Kurien, um engenheiro metalúrgico que se formara nos EUA, com uma bolsa, e fora colocado na cooperativa nascente, em contra-prestação da bolsa que auferira.
Apesar da sua formação de engenheiro, depressa viu que no trabalho que lhe calhara poderia influir na vida de milhares de agricultores, para melhorar a sua situação material e cultural. Dedicou-se-lhe de alma e coração e hoje a Federação que criou é uma entidade inspiradora para muitas outras cooperativas espalhadas pela Índia.
Na Federação das Cooperativas original, de Anand, com a famosa marca AMUL, há hoje mais de 3,6 milhões de Cooperantes, que levam o leite á cooperativa da aldeia, de manhã e de tarde. O leite é frigorificado e transportado à Unidade de tratamento, onde é retirada a gordura, para se produzir toda a gama de derivados (leite pasteurizado, manteiga, ghee, queijo, paneer, babyfood, gelados, chocolataria, shrikant, mozarella, etc).
Os cooperantes são na sua maioria mulheres dessa área de Gujarate, agora pequenas empresárias de criação, fazendo outros trabalhos compatíveis: cuidado do lar, culinária e doçaria, confeção de roupas, pequena agricultura, pequeno comércio, etc.
Desde o início, toda a preocupação estava em dar ao agricultor a melhor retribuição, aceitando todo o leite que trazia e pagando no ato. Na época das chuvas abunda o pasto e há uma produção de leite 2,5 vezes maior do que na época seca. Mas a cooperativa obriga-se a receber todo o leite, sem nunca mexer nos preços ao longo do ano, por abundância ou escassez. Isso é o melhor incentivo para que o agricultor peça um empréstimo ao banco ou à própria cooperativa, para adquirir mais vacas ou búfalas, aumentando a produção e os rendimentos.
A cooperativa elimina os intermediários e vai directamente do produtor ao consumidor final. Como recebe cada vez mais leite, tem de procurar aumentar o consumo dos seus produtos, com preços acessíveis ao consumidor. Essa é a permanente tensão: pagar o melhor ao agricultor e ao mesmo tempo manter os preços baixos, para escoar todos os seus produtos.
Só se consegue isso quando as operações logísticas (transporte, armazenamento e distribuição), de transformação para acrescentar valor (separação da gordura, fabricação de produtos derivados, empacotamento e reenvio para as cooperativas de aldeia e a outros pontos de venda da AMUL (a marca dessa cooperativa), são feitas com a maior eficiência e com qualidade indiscutível.
Assim se compreende que o PM Lal Bahadur Shastri (1965), admirado com o que a AMUL estava a conseguir, tivesse criado a NDDB- National Dairy Development Board, pedindo a Kurien para ser o Chairman, para reproduzir o modelo Cooperativo de Anand noutros Estados da Índia. Kurien fê-lo magistralmente bem!
Também porque o comércio de óleos alimentares estava nas mãos de uns quantos poderosos, vendendo óleos de pouca qualidade, quando não adulterados, pediram a Kurien que criasse uma Cooperativa de produtores de óleos, coisa que fez com grande sucesso, lançando a marca Dhara, com altos padrões de qualidade, que se impuseram a toda a Índia. No trajecto, algumas ameaças de morte não o fizeram desviar dos seus propósitos.
Haverá hoje mais de 80 milhões de famílias com um segundo fluxo de rendimento diário proveniente da sua integração na cooperativa local.
Na altura da independência, quando 90% da população indiana estava subnutrida devido a exploração inglesa, a produção de leite era ínfima (em 1960, de 22 milhões de toneladas; em 2018/19, 188 MT). Com a difusão do conceito cooperativo a Índia passou a ser o primeiro produtor mundial de leite, ultrapassando os EUA em 1977. A partir daí tem vindo a crescer de 4 a 6 % anuais, deixando longe o 2.º produtor. Há pessoas que pela sua integridade, inteligência e trabalho dedicado à causa, acabam por influir muito positivamente na vida de milhões de cidadãos.