O crescimento do sentimento de invisibilidade de parte da população revelou-se de forma clara em 2016, quando a maioria dos membros das elites, intelectuais e políticas, foi surpreendida pelo resultado do referendo no Reino Unido e pela eleição de Donald Trump.  Na verdade, os sinais já se encontravam à nossa disposição, mas, como muitas vezes acontece, temos dificuldade em compreender aquilo que não queremos aceitar.

No caso britânico, os sinais podiam ser encontrados no crescente descontentamento dos grupos designados como “os left behind” ou “o squeezed bottom”, que têm sofrido diretamente os efeitos de uma economia globalizada. Esse descontentamento traduziu-se ainda antes do referendo com a queda progressiva do chamado “Red Wall”. Como Robert Ford e Matthew Goodwin chamam a atenção em Revolt on the Right: Explaining Support for the Radical Right in Britain, o crescimento do UKIP em 2014 fez-se maioritariamente por conta de trabalhadores brancos do sexo masculino, que tendo votado Labour anteriormente se sentem abandonados pelo partido desde Tony Blair. (Com as eleições gerais de 2019, o Red Wall tornar-se-ia azul.) Na verdade, os argumentos de cariz económico que os europeístas repetiram até à exaustão em defesa da permanência não se repercutem na vida de milhões de britânicos – que sentem o fosso crescente entre a sua vida, que piorou em resultado de uma economia aberta e globalizada, e a das elites, que beneficiam direta e imediatamente desse novo mundo, como David Goodhardt assinala em The road to somewhere.

Contudo, mais importante do que o elemento económico, o que esteve em jogo no referendo, como Roger Scruton foi chamando repetidamente a atenção nos meses que antecederam a decisão, era uma questão de identidade. E isto não só no sentido de a UE comportar um simbolismo que desafia diretamente a tradição britânica, como o filósofo inglês explica, mas também no que diz respeito à imigração e ao facto de a UE pretender representar um mundo sem fronteiras. O problema é que, como diz Scruton, sem confiança e sentimento de pertença não existe possibilidade de comunidade, democracia, política.

Longe de ter sido uma ocorrência inesperada, o Brexit foi resultado da mudança que tem caracterizado as sociedades ocidentais nas últimas décadas: o paradigma económico pode iludir-nos com crescimento, conforto e bens materiais durante algum tempo, mas não é capaz de suprir, a longo prazo, as necessidades identitárias que dão sentido à nossa experiência comunitária. Isto não significa que as questões económicas sejam ignoradas, mas antes que são re-interpretadas de um ponto de vista identitário – que nos remete para uma reflexão sobre confiança, pertença e comunidade.

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No que diz respeito à eleição de Donald Trump, e apesar das especificidades norte-americanas, podemos encontrar linhas de explicação paralelas. Pouco depois da eleição, Mark Lilla defendeu, no The New York Times, que a vitória de Trump resultava da viragem identitária que os liberais (em sentido norte-americano) tinham adotado e que tinha esvaziado o sentido político do partido democrata:

“A fixação em diversidade nas nossas escolas e na imprensa produziu uma geração de liberais e progressistas narcisicamente inconscientes das condições de vida fora dos seus grupos autodefinidos, e indiferentes à tarefa de contactar com americanos de todas as origens sociais.”

Incapazes de autocrítica (basta verificar a reação ao artigo de Lilla, um convicto democrata), muitos optaram por insultar os eleitores de Trump, como Vítor Bento chamou a atenção logo a seguir à eleição: “Sexistas, machistas, racistas, xenófobos, brutos, primários, deploráveis, foram alguns dos qualificativos usados pela elite bem pensante (a que um Gramsci actual atribuiria a nova “hegemonia cultural”) para caracterizar os eleitores que votaram Trump.”

No entanto, tal como aconteceu com o Brexit, não é assim tão difícil compreender a vitória de Trump. Ela resulta do “Manufacturing Belt” que a economia globalizada transformou em “Rust Belt; e de um “Bible Belt”, que tem reagido contra a agenda progressista que destrói a tradição moral e religiosa; mas também do designado “Suicide Belt”, que tem sido estudado pelos economistas Angus Deaton e Anne Case, como Vítor Bento refere.

Num curto documentário do Wall Street Journal, os dois economistas explicam como cunharam o termo “deaths of despair” para aludirem às mortes relacionadas com o abuso de álcool e drogas (a crise de opiáceos levou a que, em 2017, a HHS a declarasse uma emergência de saúde pública), e em particular aos suicídios, que registam taxas inéditas em homens brancos entre os 45 e os 54 anos. Os autores referem alguns fatores que podem explicar o fenómeno, mas é possível desde logo apontar uma relação direta com o nível de escolaridade: é duas vezes mais provável que aqueles que não obtiveram diploma universitário cometam suicídio do que aqueles que o obtiveram. A conclusão de Deaton e Case é a de que a economia atual gerou um mundo que é benéfico para uma parte minoritária da sociedade norte-americana, mas que está a deixar a maioria para trás.

Não é, por isso, surpreendente que, por todo o mundo ocidental, essa maioria se esteja a revoltar contra a elite globalizada e esclarecida. Entre nós, habituamo-nos a dizer que o elevador social está avariado, mas esse não é um problema exclusivamente português. E parte dessa avaria resulta de uma reformulação das ideias de esforço, trabalho e mérito. É a essa reformulação que dedicarei o próximo texto.

P.S.: Por péssimas razões, o debate sobre imigração parece ter finalmente começado em Portugal. Não deixa de ser curioso como o assunto é colocado entre nós como se fôssemos os primeiros a ter de lidar com o tema (algo que se verifica recorrentemente). Na verdade, a maioria das sociedades ocidentais já está numa fase avançada deste debate e seria importante se pudéssemos aprender alguma coisa com o que foi discutido e compreendido. Desde logo, estarmos de acordo com o princípio democrático básico de que falar sobre o assunto não pode ser um opróbrio. O impulso pavloviano de recorrer ao insulto para catalogar quem tenta falar sobre o tema não é útil, nem inteligente. A imigração levanta, a diferentes níveis, muitos problemas e seria bom que pudéssemos falar sobre eles por forma a descobrir uma resposta social que nos comprometesse. É a isso que geralmente se chama democracia. Sem medo de represálias na tentativa de discutir o assunto, merece referência Douglas Murray, quer nesta curta intervenção durante o debate sobre o tema no The Oxford Union Society (2014), quer em A Estranha Morte da Europa (2017).