Suponho que por esta altura já foram feitas mil e uma análises à derrota de Kamala Harris, as suas causas e consequências. E é por isso que este artigo não pretende fazer essa análise, pretende sim chamar à atenção para a bolha que vivem a maioria dos analistas e comentadores profissionais que abundam nas nossas TVs e jornais.

Um fenómeno que não é novo são os analistas tendenciosos, sendo que nasceram da introdução do modelo opinativo dentro da programação noticiosa. Irónicamente, a introdução deste modelo, na sua forma mais mediática e extremista, é uma invenção americana, que tem origem na abolição da “Fairness Doctrine” (1949), uma legislação adotada pela Comissão Federal de Comunicações que exigia às emissoras de rádio e TV a apresentar coberturas justas e equilibradas sobre assuntos controversos, dando espaço a diferentes pontos de vista. Ora, a sua abolição em 1987, muito por culpa do lobby do falecido fundador da Fox News, Roger Ailes, permitiu a emergência de programas de opinião apenas com um ponto de vista, o que não sendo a principal causa da polarização atual das nossas sociedades, foi sem dúvida um dos catalisadores.

Estes novos programas de opinião são agora autênticos ninhos, não só da polarização de opiniões, mas também da mediocridade, isto porque mais do que o conhecimento técnico e experiência, estes programas procuram mediatismo e forma de monetarizar os seus conteúdos. Os comentadores são pessoas que têm likes no Instagram ou milhares de visualizações no X (Antigo Twitter) ou Youtube. Nada cria mais impacto e mediatismo do que fechar grupos de pessoas nas suas próprias câmaras de eco, o que não acontece só nas redes sociais, também funciona nos canais de TV e diferentes programas. As pessoas querem ver, ouvir e ler principalmente (e muitas das vezes apenas) aquilo em que acreditam, criando depois grupos tribais de defesa desses sistemas de convicções.

Tivemos ao longo destas eleições americanas a situação caricata de ter vários comentadores nas TVs portuguesas que nunca foram sequer aos EUA. Não é apenas o facto de não terem qualquer trabalho desenvolvido sobre política interna americana, é também a agravante de desconhecerem completamente a realidade do país, sem ser pelos conteúdos hollywoodescos, clichés culturais ou umas férias em Nova Iorque. Não conhecem a realidade das vilas e condados no Arizona, Pensilvânia ou Geórgia, os problemas e preocupações destas pessoas, que mesmo que sejam em muito menor número, têm tanta importância como as pessoas da Califórnia ou Nova Iorque, devido à natureza do sistema político americano (aliás como se viu pelos resultados desta eleição de 2024). Claro que não reina só a mediocridade, existem também especialistas credíveis, com provas profissionais dadas, seja no meio académico, seja no empresarial ou político, mas que se deixam também levar pelo que querem e não pela cautela que deveremos ter com a realidade. A natureza dos programas opiniativos não só o permite como o incentiva.

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A emergência destes formatos também prejudicou os conteúdos noticiosos e a forma como as pessoas recebem as informações. Refiro o também porque nesta matéria da desinformação as redes sociais estão a receber bastante mais atenção do que os meios ditos mais tradicionais. É importante frisar que não existe absolutamente mal nenhum em ter programas de opinião e debate, com diferentes pontos de vista. A discussão é necessária para qualquer democracia saudável. Mas não é disto que falamos, estes programas não têm discussões sérias, que têm de ter como base dados convincentes ou pelo menos um ponto de partida factual. São apenas programas de claque. Pretendo também ser justo, e portanto vale a pena referir que existem também programas sérios nas nossas TVs portuguesas, simplesmente não é a única formula usada, nem sequer são uma maioria.

A polarização é endurecida com estes programas, ao mesmo tempo que os programas vão aumentando em número com a polarização, como uma bola de neve diabólica. O dia seguinte às eleições americanas foi um banho de água fria para quem estava dentro do seu próprio mundo e recebeu uma dose de realidade, e foi um festival de êxtase para quem queria Trump como Presidente, comportando-se como se de um jogo de futebol se tratasse, mesmo não sendo americano ou nunca tendo posto os pés nos EUA. É este o sabor da polarização, onde a noção não abunda. Pessoalmente, não estava entusiasmado com a candidatura de Kamala Harris, mas seria a minha escolha. Sabia que havia uma muito ligeira vantagem nas sondagens para Harris, tal como noticiado e partilhado pela maioria dos órgãos de comunicação respeitados. Mas não seria surpreendido por uma vitória de Trump (nem uma vitória em qualquer uma das câmaras do Congresso por parte dos Republicanos), por uma série de questões, desde o conhecimento das diferentes realidades nos EUA, a cautela pelas margens tão curtas, a dificuldade criada pela inflação e a polarização crescente na sociedade americana.

Algo muito importante no pós-eleições é também a forma como tratamos o desconhecido. Um americano não é um europeu, as suas percepções e experiências são  muito diferentes. Votar em Trump não significa que todas as pessoas nos EUA são miseráveis ou racistas. É bastante irónico ver pessoas na esfera pública portuguesa, críticas absolutas do racismo e xenofobia, a fazer generalizações a uma população inteira, tão diversa e tão díspar.

Devemos ser críticos e vigilantes, pedir mais a quem introduz e disponibiliza estes programas no espaço público. Não se trata de proibição, trata-se de responsabilização.