1. O apelo comunitário
Permitem-me que regresse a Jean-Jacques Rousseau? Continua a parecer-me que a melhor maneira de compreender as mudanças que estão a ocorrer nas sociedades ocidentais é conhecendo o seu pensamento. Afinal, se a história das ideias se encontra marcada por constantes revivalismos, importa notar como, depois de derrotadas pelo liberalismo, as ideias de Rousseau são hoje cada vez mais frequentes.
A verdade é que, apesar de ter vivido em pleno século das Luzes, o pensamento de Rousseau é mais bem descrito como uma espécie de proto-romantismo, projetando ideias que seriam influentes no século seguinte. Pensemos na defesa de uma sabedoria pré-racional e na desconfiança face à Razão e ao Progresso; na prevalência da pureza das emoções e dos sentimentos perante a falsa intelectualidade das Luzes; na ligação à natureza e a uma vida simples contra a imoralidade das grandes cidades. Pensemos na dimensão comunitarista do espartano Rousseau: sim, porque era Esparta que cativava a admiração de Rousseau, não Atenas.
Sejamos justos. Considerando a desestruturação atual das sociedades ocidentais, não é surpreendente que encontremos relevância nas ideias de Rousseau: afinal, as sociedades necessitam de um âmago comunitário para poderem funcionar de modo saudável, partilhando recursos e responsabilidades sociais para além da letra da lei, e a democracia exige um caldo cultural comum para ser possível decidir coletivamente um projeto futuro. Uma cidade onde as pessoas vivem apenas centradas nos seus interesses, evitando olhar os outros nos olhos e não se interessando pelo que é comum, pode existir enquanto local de negócios e tribunais, mas nunca conseguirá garantir uma vida boa, como diria Aristóteles. Neste sentido, a visão comunitarista de Rousseau parece responder às ânsias humanas naturais de pertença e comunidade.
2. A vontade geral
Ora, de acordo com o famoso Contrato Social de Rousseau, aquele sentido de pertença traduzir-se-ia num mecanismo de vontade geral: as leis seriam aprovadas pelos cidadãos, reunidos em assembleia, considerando o bem comum – e seria através desta participação que recuperaríamos a liberdade perdida do estado natural. Ser verdadeiramente livre, para Rousseau, é ser autor das próprias leis, pelo que o filósofo recusa o mecanismo representativo que faz com que os ingleses sejam livres apenas de 4 em 4 anos.
Este aspeto dá origem a dúvidas legítimas e Rousseau não se esquiva a reconhecê-las: “a questão é saber como pode um homem ser livre e forçado a conformar-se a vontades que não são as suas. Como podem os opositores ser livres e sujeitos a leis às quais não deram o seu consentimento?”
Notemos a sua resposta:
“O cidadão dá o seu consentimento a todas as leis, mesmo às que se aprovam contra a sua vontade e mesmo às que o punem quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral: é graças a ela que são cidadãos e livres.”
Aparentemente, subjaz a este raciocínio a lógica democrática de que a lei aprovada por maioria obriga todos os cidadãos, mesmo aqueles que dela discordam. Mas, na verdade, quando Rousseau fala em vontade geral está a atribuir-lhe um sentido muito específico: quando nos juntamos em assembleia para decidir, não devemos tomar uma posição considerando os interesses próprios, mas devemos verificar se a proposta sob análise está de acordo com o interesse da comunidade. É esse exercício que somos convidados a fazer e quando um de nós assume uma posição que não está de acordo com a maioria, isso “nada mais prova senão que me enganei.” (itálico meu)
Eis o âmago do argumento rousseauniano: quando prevalece a opinião contrária à minha (i.e., quando a maioria decide de modo diferente), isso não significa que a minha posição resulta de um entendimento minoritário, mas legítimo; antes significa que me enganei na perceção do bem comum e que, por isso, a minha posição está errada.
É este raciocínio que nos permite compreender a dimensão iliberal do pensamento de Rousseau: ao afirmar que a opinião contrária manifesta o engano do cidadão, o argumento de Rousseau deslegitima as diferenças de opinião e o pluralismo. O bem comum e os valores sociais não estão abertos a diferentes interpretações e entendimentos pelo que, quando não votamos ao lado da maioria, as nossas opiniões devem ser condenadas, penalizadas, ostracizadas.
Rousseau é, aliás, muito claro quanto às ideias liberais de desacordo, debate e troca de ideias:
“Quanto mais reina o consenso nas assembleias, isto é, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, mais a vontade geral é dominante. Mas os longos debates, as dissensões, o tumulto anunciam o ascendente dos interesses particulares e o declínio do Estado.”
3. A vitória de Rousseau?
Os tempos sombrios que vivemos levam-nos a encontrar recorrentemente este espírito rousseauniano. É o que acontece no contexto da União Europeia, quando se recusam outros entendimentos do projeto europeu, do seu alcance e dos seus objetivos, considerados ilegítimos por contrariarem o consenso ditado pelo pensamento progressista.
Também é possível encontrar o espírito de Rousseau em certas publicações que recusam a legitimidade de entendimentos diferentes sobre o bem comum e os valores morais. Um bom exemplo disso é o manifesto recentemente publicado pelo ex-ministro da educação, João Costa. O texto apresenta pouca densidade argumentativa (apesar de, ou talvez por causa disso, recorrer muito ao negrito e ao sublinhado), mas a lógica subjacente é facilmente identificável: quem não concorda com a visão do autor está a promover discurso de ódio, descontextualização e desinformação ou, numa versão mais piedosa, é simplesmente ignorante. Aos detentores da razão cabe “acender as luzes para que o terror se dissipe”. O espírito de Rousseau não poderia estar mais presente: se não estás de acordo comigo, a tua posição é ilegítima.
Recorro a um último exemplo demonstrativo da lógica rousseauniana da vontade geral: de acordo com notícia do Público, alguns munícipes e organizações conimbricenses contestaram a atribuição da Medalha de Mérito de Solidariedade Social à Associação de Defesa e Apoio à Vida, uma das associações fundadoras da Federação Portuguesa pela Vida e que se opõe à legalização do aborto e da eutanásia. Para o movimento feminista Rede 8M, reconhecer o trabalho social meritoso desta associação seria preocupante, uma vez que “em 2007 a população [de Coimbra] votou no referendo com 66,3% a favor da legalização do aborto. De resto, todas as freguesias votaram no Sim”. Rousseau não o diria melhor: a decisão da maioria em determinado sentido retira legitimidade aos que têm uma opinião contrária. Se a maioria se pronunciou, a minoria deve ser silenciada, proscrita, condenada. Afinal, a sua posição não é apenas diferente – está errada.
É possível que Rousseau esteja mais de acordo com a nossa natureza do que o projeto liberal. Afinal, resistir à tentação de impor a nossa verdade aos outros é um exercício extremamente exigente – e vemos cada vez mais pessoas incapazes de o praticar. Mas com todos os problemas manifestos do liberalismo, não é o pluralismo político um valor pelo qual vale a pena lutar?