Para testar o que é verdadeiramente importante no recheio de uma casa, há este velho exercício: imaginem que a casa arde e só podemos salvar uma coisa – que coisa seria? As autoridades nacionais, nesta epidemia, responderam a um teste parecido. Se tudo tiver de parar, menos uma coisa, qual seria essa coisa? A economia? Não. A educação? Também não. Para a nomenklatura, a única coisa que não pode parar, por maiores que sejam os riscos e os custos, é – a celebração do 25 de Abril e do 1 de Maio, com as suas cerimónias parlamentares e manifestações de rua. Os alunos podem ficar sem aulas, os trabalhadores sem emprego, as famílias e os amigos sem contacto entre si, mas o PCP e a CGTP é que não podem ficar sem homenagens e desfiles. São estes os limites da saúde pública em Portugal. Porquê?

Como já muita gente reparou, não se trata de comemorar o 25 de Abril. Trata-se de arranjar mais um pretexto para provar que os que não estão com a esquerda não estão com o 25 de Abril, e portanto não estão com a democracia. Ora, nada disto tem qualquer fundamento.

O movimento militar de 25 de Abril de 1974 não foi obra da esquerda. O 25 de Abril foi obra dos oficiais das forças armadas do Estado Novo, para quem se tinha tornado claro que a ditadura, dividida, estava num impasse sobre o que fazer em África. Quase toda a gente aderiu, a começar por aqueles que viriam a fundar a actual direita: Freitas do Amaral elaborou, com Amaro da Costa, o programa do governo provisório; e Sá Carneiro tornou-se o braço direito do primeiro-ministro Palma Carlos. Portanto, não, o 25 de Abril não foi da esquerda.

No entanto, a partir do Verão de 1974, as dificuldades da chamada “descolonização” deram ao PCP e à extrema-esquerda uma influência nas Forças Armadas que lhes permitiu, durante quase um ano, exercer o poder e sonhar com um Portugal de tipo soviético ou terceiro-mundista. Hoje, o 25 de Abril é associado à liberdade e à democracia, e não, como o 28 de Maio, ao começo de uma ditadura. Mas isso só é assim  porque em 1975 houve quem resistisse, nos quartéis e nas ruas, à tentativa de tomada do poder pelo PCP.

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Como seria de esperar, foi com o chamado PREC que, desde 1976, o PCP e a extrema-esquerda insistem em identificar o 25 de Abril. É para isso que lhes têm servido as comemorações, as suas e até as do Estado, em que aparecem sempre como os mais fervorosos. O objectivo não é apenas, ao inventar um 25 de Abril que só os comunistas podiam aplaudir, provar mais uma vez que quem não é comunista é “fascista”. O objectivo é também poder tratar a consolidação democrática em Portugal – o fim do Conselho da Revolução em 1982, a entrada na CEE em 1986, ou a abertura da economia em 1989 – como uma “traição ao 25 de Abril”, e fazer do actual regime algo de ilegítimo à luz das suas supostas origens.

A democracia em Portugal não se fez apenas contra o Estado Novo, mas também contra o chamado PREC de 1975. O PCP e a extrema-esquerda, porém, tentaram sempre fazer de conta que a verdadeira democracia foi o PREC. Nesse esforço, tiveram a colaboração de muitos militares do MFA, mesmo daqueles que haviam resistido à hegemonia comunista em 1975, mas que, deixados no museu pela evolução da democracia, encontraram nos comunistas um eco para os seus despeitos. A novidade é que também tem agora a colaboração de mais um dos seus adversários de 1975, o Partido Socialista. O interesse do PS é claro. Por um lado, anima a actual “geringonça” com o PCP e o BE; por outro lado, prepara o terreno para outras geringonças, ao refrescar uma ideia que sempre lhe serviu: a de que a direita “está contra o 25 de Abril”, e que portanto só alinhando com o PS demonstrará que é democrática.

Os católicos fecharam as igrejas, e o papa apareceu sozinho. Mas as esquerdas portuguesas não se podem permitir tais despojamentos. Quem serve um deus que sabe ser falso, nunca pode dispensar o aparato de cerimónias e manifestações que sustenta as mentiras.