Por cada ato eleitoral (europeias, autárquicas, legislativas, presidenciais) regressa o debate sobre a elevada abstenção. Ao contrário das opiniões recorrentes, penso que o assunto em si pouco ou nada tem de preocupante. O que é preocupante é o sentido do debate público sobre a abstenção eleitoral, crescentemente histriónico, e que torna credíveis opiniões bastante duvidosas. Destaco, como exemplos de diagnósticos e soluções, as teses da abstenção ser o espelho do divórcio entre governantes e governados ou a necessidade da imposição do voto obrigatório. Se na substância tais manifestações não fazem muito sentido, o problema é que elas tendem a enraizar-se entre aqueles têm nas mãos as possibilidades de mudar ou de influenciar a alteração das regras do jogo eleitoral, um referente-chave para a estabilidade dos sistemas democráticos ao longo das gerações.
Trata-se de (mais) uma matéria em que as sociedades podem ser vítimas da falta de afirmação de ideais conservadores. Se os progressistas colocam recorrentemente em causa os equilíbrios dos sistemas sociais e políticos por excessos de ação, os conservadores fazem o mesmo por excessos de omissão.
Seleciono alguns dos argumentos que sustentam a minha opinião.
Em primeiro lugar, não existe qualquer relação convincente entre o aumento da participação eleitoral e o aumento da qualidade das democracias. A correlação entre essas variáveis pode até ser inversa. Por outro lado, a legitimidade das democracias não se mede necessariamente pelos índices de participação eleitoral, mas também pelo modo de vida que sustentam. Não é por acaso que o modelo fundador da democracia estava limitado à participação de apenas cerca de dez por cento da população ateniense, os cidadãos. Se hoje vivemos realidades em (quase) nada comparáveis às da Grécia Clássica, o que importa ter em conta é que a salvaguarda do direito universal do voto não é confundível com o seu exercício efetivo, sendo o último da esfera do livre arbítrio de cada indivíduo. O primeiro, o direito ao voto, constitui um dogma da condição da cidadania contemporânea que deve ser conservado sem quaisquer restrições. No segundo caso, é para mim impensável que alguém seja impedido de votar por quaisquer razões, como não ter exercido o direito de voto em eleição ou eleições anteriores, ou que alguém deixe de usufruir da plenitude dos seus direitos sociais ou cívicos por não ter votado. Ou seja, equiparo o direito de não votar ao direito do voto ser secreto. Romper essas barreiras terá sempre consequências perniciosas.
Em segundo lugar, o direito à abstenção está na essência do funcionamento dos sistemas democráticos e das sociedades livres (no mesmo nível do direito de votar) e, ainda que entre outros aspetos, é o que situa as democracias nos antípodas dos regimes totalitários. Nos últimos, a participação política dos indivíduos nos processos políticos, com ou sem votos, é massificada, compulsiva, obrigatória, como se não existisse vida para além da política. Espero, por isso, que não venhamos a ser confrontadas com um dilema absurdo: ou vivemos em democracia (e para isso os cidadãos vivem numa pressão compulsiva ou mesmo obrigatória para terem de votar) ou vivemos em sociedades livres (que nos conferem legitimidade para não votar e para nos alhearmos da política). No limite, é para aí que nos encaminhamos. Albert Hirschman, sociólogo que pensou a participação dos indivíduos na vida social e institucional, explicou que abstenção funciona como uma espécie de válvula de escape dos regimes democráticos, uma espécie de garantia de segurança sísmica, a ser mobilizada quando os indivíduos sentem que vivem efetivamente momentos de crise grave e, acrescento, ao mesmo tempo alimentam a perceção de que a solução dos seus problemas passa, de facto, pela esfera política e, não menos, pelas suas escolhas eleitorais. Quando estas três dimensões não se conjugam a abstenção é uma atitude tão lógica e inteligente quanto a participação eleitoral.
Recorro ao exemplo português. Os que afirmam que o PS, uma vez instalado hipoteticamente no poder nos anos próximos, pouca margem terá para fazer substantivamente diferente do PSD-CDS-PP para além do detalhe, são os mesmos que discutem a necessidade do combate à abstenção. Se a diferença ao nível da ação política reside no detalhe, é o detalhe ou a margem que vota. Não quer dizer que o voto em situações de elevada abstenção não tenha valor. Bem pelo contrário. É precisamente porque esse voto tem muito valor que deve ser respeitado enquanto tal. E se se acredita que o sentido dominante dos votos é errado por causa da abstenção, atitude moralista em geral incompreensível, o problema está na qualidade do debate e das propostas políticas e não se resolve disfarçando-o por via da alteração das regras do jogo. Significa confundir o essencial com o acessório.
Claro que as democracias estão em reinvenção permanente, mas não é menos claro que de tanto se reverem as regras básicas do seu funcionamento fica muito mais aberta a possibilidade de a democracia poder deixar de ser democracia para se transformar numa democracia alternativa. Orwell tipificou essa situação pela renovação dos princípios que regiam a Quinta dos Animais em prol do regime autodenominado de correto. O psicólogo social Serge Moscovici, por seu lado, tem uma tese equivalente quando considera que aqueles que incentivam a mudança são muitas vezes os que desejam que tudo mude à sua volta para que eles fiquem na mesma, mais seguros das suas posições. Retrato habitual do mainstream político.
Em terceiro e último lugar, se a democracia não se esgota no ato de votar como é comum defender-se (e bem), por maioria de razão a relação dos indivíduos com o mundo que os rodeia não se esgota na dimensão política. Além disso, essa relação é dinâmica, flexível, variável no tempo e condicionada por inúmeras variáveis. Não partilho, por isso, a ideia da crise das democracias da Europa Ocidental. Mas se partilhasse consideraria que o sintoma não residiria na abstenção eleitoral, antes na incapacidade de encará-la com maior naturalidade.
Pertenço ao grupo dos que votam sempre.