Em poucos dias desmoronou-se aquilo a que Passos Coelho chamou, com toda a propriedade, “um conto de crianças”. Não sei porquê, a expressão causou por aí muita indignação e suscitou manifestações de um pudor institucional inusitado: em suma, não era digna de um Estadista. A deslocada sobranceria de Passos não oferecia mistério: era apenas um torpe subterfúgio para ofuscar a cobardia do próprio governo, que como um servo obediente e agradecido sacrificara desnecessariamente Portugal ao diktat da pérfida Alemanha. O Syrisa daria ao Mundo o exemplo de como se arrasa um “tigre de papel”. Passos que olhasse e cobrisse a cara de vergonha.
Durante duas semanas, nós todos olhámos, lemos, ouvimos. Ao que assistimos foi a um espectáculo de arrogância provocadora, seguido, no dia 20 de Fevereiro, de uma sumária capitulação. Ninguém a resumiu melhor do que Manolis Glezos, o lendário patriarca do Syrisa: “Rebaptizar a troika de ‘instituições’, o memorando de entendimento de ‘acordo’ e os credores de ‘parceiros’, em nada altera a situação prévia, tal como trocando o nome de carne pelo de peixe.” O venerando eurodeputado pelo Syrisa declarou que as concessões já feitas tinham passado além dos limites, pois que nem se obtivera a “remoção da austeridade”, nem “a abolição da troika e respectivas consequências”. Dito isto, pediu desculpa ao povo grego por ter contribuído para a sua “ilusão”.
Não, Manolis Glezos não se tornou o meu herói; nem me parece que ele acredite em “contos de criança”, muito pelo contrário. Ele acredita (ou acreditava), isso sim, na possibilidade de uma verdadeira revolução: mandar o euro às urtigas e a Europa às favas, voltar ao dracma e imprimir notas a rodos, desprezar a inflação e voltar ao proteccionismo, nacionalizar a Banca, a construção naval e os sectores estratégicos da economia que por lá existam, subsidiar preços, multiplicar e aumentar subsídios, fazer do Estado uma fonte inesgotável de emprego. Enquanto as rotativas do Banco Central Grego não se cansassem, nada nem ninguém poria limites ao comprovado génio grego para de manhã não se interrogar sobre o que será à noite. Sair da NATO viria na sequência lógica, necessária e desejada da opção revolucionária. O Mundo é grande e há nele um quadrante asiático com potências desejosas de apadrinhar uma mudança anti-europeia da geopolítica grega. Tudo isto acabaria em catástrofe? Claro que sim, mas ao menos seria coerente com a apregoada vontade de recuperar a soberania plena.
O problema do Syrisa, e da dupla Tsipras/Varoufakis em particular, é que a maioria dos que votaram neles não são revolucionários. Mais de 70% dos gregos pronunciaram-se repetidamente a favor da permanência no Euro, que lhes proporcionou desafogo, benesses e lazer como nunca tinham gozado. Acreditaram no “conto de crianças” com que Tsipras deliberadamente os enganou a fim de conquistar o poder. Fê-lo convencido, talvez, de que na época pós-modernista (e, portanto, pós- marxista), quando a classe operária ou desapareceu ou se aburguesou e o consumismo se converteu na única paixão universal, a revolução teria de ser feita à revelia do “povo”, cuja única e provisória utilidade reside nos votos que concede a troco de promessas falsas e até delirantes.
À esquerda e à direita, o populismo, que até já tem o seu maître à penser, um obscuro “filósofo” argentino de seu nome Ernesto Laclau (falecido no ano passado), consagrou-se como instrumento legítimo de revoluções diferentes, mas revoluções à mesma. Marine Le Pen e Alexis Tsipras comungam da mesma ética (ou falta dela), e servem-se dos mesmos meios para alcançar diferentes fins: o recurso descarado ao populismo, à mentira descarnada, à exploração dos instintos mais primitivos das massas para atraírem os votos que lhes entreguem o poder. Ela para restaurar a desmedida grandeza de uma França para os franceses brancos e cristãos. Ele para destruir o capitalismo e vencer a globalização.
Varoufakis, depois das provocações e fanfarronadas iniciais, percebeu que se defrontava com outros 17 países que nem se impressionaram com a sua premeditada informalidade, nem se amedrontaram com a sua variegada chantagem, nem estavam dispostos a contemporizar com as extravagantes e exorbitantes exigências de Atenas – um absurdo a que só a perspectiva revolucionária de Manolis Glezos poderia conferir racionalidade e propósito. As exigências mais lunáticas caíram ainda antes do início das negociações, como simplesmente “não pagar” (lembram-se ?), ou no mínimo mais um perdão parcial da dívida, a pura e simples eliminação da troika, o encerramento do programa de resgate em curso sem prévia avaliação e aprovação pelas “Instituições”, e o incondicional “empréstimo-ponte”, para aliviar o garrote financeiro e dar tempo a que o governo se orientasse.
À segunda reunião do Eurogrupo, no dia 20, tudo caiu por terra, permitindo que Schäuble tranquilizasse por carta o Bundestag: “A Grécia compromete-se a colaborar com a União Europeia, com o Banco Central Europeu e com o FMI”, nomeadamente “nas reformas estruturais que promovam o crescimento económico e a criação de emprego.” Mais: a Grécia “Não poderá implementar unilateralmente qualquer medida que ponha em risco as metas orçamentais definidas, a estabilidade financeira do país e a recuperação económica”.
Que remédio senão ceder: Varoufakis e Tsipras sabiam que tinham prometido dinheiro sem austeridade. Como podiam enfrentar o seu eleitorado levando-lhe, em alternativa, uma revolução que este não lhes encomendara e não queria ?! Nesta emergência, para engodo dos incautos mudaram os nomes e deixaram as coisas. A astúcia é grosseira, mas talvez possa ser engolida pela credulidade do eleitorado que os elegeu. Mais difícil está já a ser fazê-la engolir aos deputados e ao partido, e, sobretudo, aos que levaram a sério as promessas do Syrisa, tomando-as pelo começo da revolução.
Sobra a triste figura que nisto tudo fez, e continua a fazer, a esquerda radical portuguesa. Com o seu habitual coração de ouro, acusou o governo e a direita de falta de solidariedade para com a Grécia. Mas que razões tínhamos nós para ser “solidários” em vez de simplesmente colaborantes, como fomos, numa solução consensual que viesse a encontrar-se ? Portugal penou o que tinha a penar, e o primeiro-ministro tem a coragem de regularmente lembrar ao País que a austeridade, embora já aliviada, não acabou nem acabará tão cedo, apesar de o País ter perpetrado uma “saída limpa” do resgate e, se possível mais importante, já ter invertido a “espiral recessiva” a que até o Presidente da República nos julgou condenados.
O que fez a Grécia que justificasse o tratamento especial que exigia ? Quanto à solidariedade que lhe devemos, estamos conversados: em Março de 1985, a Grécia pura e simplesmente vetou a adesão de Portugal à CEE, com receio da concorrência que o nosso País lhe pudesse fazer na repartição dos dinheiros europeus. E apenas retirou o veto quando obteve de Bruxelas um financiamento adicional ao abrigo dos “Programas Integrados do Mediterrâneo”, como aliás já reclamara desde o ano anterior. Ou seja: Bruxelas teve, literalmente, de comprar à Grécia a adesão de Portugal !
Mas isto são rancores meus. A esquerda radical, com a vasta generosidade e elevação de espírito que a caracterizam, aclamou, como tanto lhe convinha, a vitória do Syrisa, em que via o prenúncio do seu próprio sucesso. No oferecimento de fraterna solidariedade, é justo destacar os esforços de Rui Tavares, ex-eurodeputado do Bloco, que rompeu com o partido quando percebeu que, amarrado ao extremismo, jamais alguém lhe daria ao menos uma secretaria de Estado. O líder do novíssimo “Partido Livre” não apenas se tem dedicado a uma incansável exegese, letra a letra, dos documentos enviados por Atenas a Bruxelas, em que a cada passo descobre preciosas subtilezas e salutares ambiguidades que escapam ao comum dos mortais, como exortou os “Caros concidadãos gregos: aguentem firmes, que vêm reforços a caminho […] já no futuro próximo.” (Público-on-line, 19 Fevº) Vá-se lá saber por quem ou o quê se toma.
O primeiro acto da crise “euro-grega” ainda está em curso. Com todo o espalhafato que montou, a Grécia só obteve de positivo o que Portugal alcançou sem quase se dar por isso: disponibilidade negocial quanto a metas orçamentais; alargamento dos prazos para o pagamento dos empréstimos; e o direito a sugerir propostas – dentro da “flexibilidade” pré-definida. Não menciono o socorro financeiro (com as condições ainda por aprovar pelas “Instituições”) para evitar uma bancarrota iminente porque Portugal não precisou disso. Em tudo o mais a Grécia está pior: será escrutinada pelas “Instituições” como nunca foi; voaram os depósitos bancários e as receitas fiscais diminuíram 40% só no mês de Janeiro; de positivo que era, o saldo orçamental primário passou a negativo; a solvabilidade do Estado nem a curto-médio prazo está garantida. De momento, duas das “Instituições”, o FMI e o BCE, olham com cepticismo para a lista de medidas vagas e não quantificadas que Varoufakis remeteu para Bruxelas. Apenas Bruxelas, onde Juncker verte agora lágrimas ridículas de amargura, mas que muito consolam os nossos radicais, as acha um “bom ponto de partida”. Se for alcançado um ponto de chegada, em Abril “o programa segue dentro de momentos”, de crise em crise até ao “Grexit” final.