O ano de 2023 está, definitivamente, marcado por um enorme retrocesso no acesso dos utentes aos Cuidados Médicos de Urgência/Emergência.
Nos últimos 20 anos o País fez numerosos e sinérgicos esforços para melhorar o acesso a cuidados médicos de urgência/emergência e a qualidade dos mesmos.
Em 2003 Portugal tinha 20 Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER) do INEM, com médico e enfermeiro, localizadas nos grandes centros/litoral. Atualmente tem mais de 40, com ampla cobertura territorial. Não existiam Ambulâncias de Suporte Imediato de Vida (com enfermeiro e técnico de emergência). Hoje tem cerca de 40, com base maioritariamente nos serviços de urgência básicos (SUB), predominantemente localizados em zonas do interior e/ou mais distantes dos grandes centros urbanos. Acresce a isso cerca de 40 ambulâncias com técnicos de emergência do INEM, profissionais do INEM colocados no terreno desde 2004. E ainda o importante alargamento de 2 helicópteros dessa mesma instituição, localizados em Lisboa e Porto, para os atuais 4, com localizações que denotam a preocupação com as populações mais isoladas.
Em finais de 2005 iniciou-se, no Norte, a implementação da Rede da Via Verde do Acidente Vascular Cerebral (AVC), que se estendeu a todo o País. Simultaneamente foi também criada e alargada a Rede da Via Verde Coronária, para responder de forma rápida e cabal aos utentes com enfarte agudo do miocárdio.
A par disso, foi definida uma rede de serviços de urgência (SU) em 2008 (Despacho nº 5414/2008, de 28 de janeiro), revista em 2015 (Despacho nº 13427/2015, de 16 de novembro), que garantia o acesso de qualquer cidadão a um ponto dessa rede em menos de 60 minutos.
Em 2008 e 2009 foi realizado um enorme esforço formativo, por parte das Administrações Regionais de Saúde (ARS), nomeadamente pela ARS Norte, para capacitar os profissionais dos SUB com os conhecimentos e competências necessários para atuação em situações de emergência, assim como foram dotados esses serviços com o material e equipamento adequado e coerente com essas novas competências.
Em 2014 foi ainda publicado um diploma legal (Despacho nº 10319/2014, de 11 de agosto), que definiu, sob proposta da Comissão para a Reavaliação da Rede Nacional de Emergência e Urgência, a estrutura física, logística e de recursos humanos dos SU, de forma a responder ao doente urgente e emergente, e é definida a formação dos profissionais da Rede de Serviços de Urgência.
Tudo isto trouxe a todos os portugueses, de qualquer parte do território continental, garantias de acesso a cuidados médicos de urgência/emergência e melhoria da qualidade desses cuidados.
Hoje, pela primeira vez em cerca de 20 anos, assistimos a um retrocesso dessa enorme conquista: assistimos a serviços de urgência encerrados na sua totalidade ou parcialmente, com incapacidade para assegurar os tempos de acesso preconizados e garantidos desde há cerca de 15 anos; a uma rede de serviços de urgência que, por perda de determinadas valências (como Cirurgia Geral, Ortopedia, cardiologia, etc.) perdem, efetivamente, a sua capacidade resolutiva, diminuindo, na prática, a sua diferenciação, passando, em muitos casos, a ser apenas um SUB e não um Serviço de Urgência Médico-Cirúrgico (SUMC) ou polivalente (SUP), com as todas as consequências para os seus utentes (e financeiramente, serão SUMC/SUP ou SUB?); assistimos ainda a Vias Verdes que deixam de funcionar, em situações como o AVC ou o Enfarte, em que “tempo é vida”, colocando várias centenas de utentes em risco; e, simultaneamente, como consequência, as viaturas do INEM tornam-se, eventualmente, menos disponíveis para quem precisa, porque estarão ocupadas durante mais tempo por utente, em transportes mais longos e mais demorados.
Urge parar este movimento descendente. Não é aceitável esperar até que algo de grave e irreversível aconteça a algum utente. Nem admissível que se faça como Nero, que tocava harpa enquanto Roma ardia.