1. Há dias, no “blog” do Prof. Vital Moreira, li a sua indignação por causa de uma missa católica na Universidade de Coimbra, missa que ele refere como «oficial». Missas oficiais e não oficiais não sei se existem; e, a existirem, só poderão ser as da iniciativa das autoridades oficiais competentes para o efeito, que são as autoridades eclesiásticas. Mas a questão de saber quem “oficiou” essa missa, ou fez convites para ela, não merece uma importância transcendente; e se aí houver engano, vale o que vale um engano. O que sem dúvida merece grandíssima importância é a interpretação que o Prof. Vital Moreira faz sobre o que ele designa como «laicidade das universidades públicas». Quando escreve que: «É evidente que, para além da despropositada missa, em flagrante violação da laicidade das universidades públicas…». Questão a que também ele dá imensa importância, porque escreve: «Esta não é uma questão menor! Há que apurar responsabilidades».
2. Ora bem. Eu penso que o Prof. Vital Moreira, nesta matéria (e à semelhança do que também costuma defender em matéria de liberdade escolar), falha gravemente no rigor jurídico que é seu timbre habitual, ao tratar de outras questões jurídicas e políticas. Quer no conceito de “laicidade”, quer no conceito de “público”. Vejamos.
3. Antes de mais, na nossa Constituição não está dito em parte alguma que o Estado Português, em si ou nas suas instituições estatais, é (religiosamente) laico. O que, por isso, não quer dizer que ele seja (religiosamente) crente — também isto não está dito. O que se encontra expresso na Constituição, é que «As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto» (n. 4 do art. 41.º). Ora, separado é a alternativa de junto, ou de unido. Pode-se aplicar a pessoas humanas como a coisas materiais ou organizações. Mas a alternativa entre crente e laico só se pode aplicar a pessoas humanas, que podem escolher estas alternativas (correlativas) porque essa escolha supõe consciência humana, inteligência, vontade e afectividade, que são exclusivo natural das pessoas humanas. O que está constitucionalmente garantido no art. 41.º, sobre a liberdade de consciência, de religião e de culto, é para as pessoas humanas; o que, por extensão, e só por extensão (de acordo com o n. 2 do art.12.º) pode também ser atribuído a entidades colectivas (voluntárias), cujo fim estatutário seja expressamente o do exercício civil das liberdades religiosas dos seus próprios fundadores e associados, isto é, das suas opções religiosas, no quadro do instituto jurídico das “instituições de tendência” — que o Estado não é.
4. Façamos um exercício. O meu estimado leitor me perdoará o estilo que vou usar. E pergunto-lhe: acha que o Estado Português é solteiro? Ou é casado? Uma vez que não pode contrair casamento, acha que ele é solteiro? Não é, pois não? Simplesmente, não se lhe aplica essa alternativa, entre casado e solteiro. Porque não pode casar, mesmo que quisesse, nem é casado nem é solteiro. Casar ou não casar é uma alternativa exclusiva de pessoas humanas. O Estado não pode tomar nem uma nem outra destas duas alternativas.
5. Ora bem, isto é o mesmo que se passa com a religião. Os cidadãos, porque são pessoas humanas, podem ter fé ou não ter fé religiosa. Digamos que podem ser crentes (casados) ou laicos (solteiros). Os que são crentes podem um dia mais tarde ser laicos. E os que são laicos podem um dia converter-se religiosamente e ficar crentes. Mas o Estado não tem estas liberdades de opção. Não é sujeito jurídico capaz de fazer esta escolha. Digamos que é “absolutamente incapaz”, e por isso alheio, ou neutro, perante esta alternativa. Neutro ou imparcial perante os cidadãos crentes e laicos. Entre uns e outros, o Estado não toma (não pode tomar) partido, não escolhe nem prefere. Não discrimina negativamente nem uns nem outros.
6. É verdade que, entre nós, corre usualmente a expressão de que o Estado é laico, ou da laicidade do Estado. Mas trata-se de uma conotação imprópria, que tem de ser rigorosamente evitada quando se colocam questões de direitos e deveres fundamentais dos cidadãos em matéria religiosa. Melhor seria falar de neutralidade religiosa do Estado, como por exemplo fazem autores alemães, embora a questão se insira numa outra mais ampla: a da “Weltanschaulichen Neutralität Des Staates”. Neutralidade (em certa matéria) é a posição de não participar em opções (nessa matéria). E o Estado não toma (não pode nem deve tomar) partido nas opções em matéria religiosa. No regime jurídico português, temos uma disposição muito significativa, e autorizada, desta melhor conceituação (da “neutralidade religiosa do Estado”) na Lei da Liberdade Religiosa, quando ela dispõe que a Comissão da Liberdade Religiosa «é constituída por pessoas agrupadas em duas alíneas»; sendo a segunda composta por «cinco pessoas de reconhecida competência científica nas áreas relativas às funções da Comissão, designadas pelo membro do Governo competente na área da justiça, de modo a assegurar o pluralismo e a neutralidade do Estado em matéria religiosa.» Note-se bem: «pluralismo e neutralidade do Estado em matéria religiosa» (v. art. 56.º).
7. Sim, sim. Na Constituição está dito que «o ensino público não será confessional» (nº 3 do art. 43.º). Aqui, e no contexto da histórica redacção da Constituição, público quer dizer estatal, de iniciativa e estatuto estatal, e não de iniciativa e estatuto civil. O que também não é conceptualização rigorosa, porque o que é civil pode ser de interesse privado ou pode ser de interesse público. Portanto pode ser civil e público. E o critério dos interesses é que conta, não o critério dos sujeitos. O Estado não tem o exclusivo da esfera pública. Há uma esfera pública civil e uma (mais restrita) esfera pública estatal. Aqui, e por brevidade, remeto para a distinção ensinada por Manuel de Andrade, entre instituições civis de interesse e ordem privada e instituições civis de interesse e ordem púbica. Porque (e como já disse e é consabido) critério mais importante para esta distinção entre privado e público é o critério dos interesses, e não o critério dos sujeitos. E remeto ainda para constitucionalistas europeus dos mais eminentes, como apenas e por exemplo Peter Häberle (alemão) e Paolo Ridola (italiano), que defendem que são três, e não apenas duas (privada e pública) as esferas na “res publica” constitucional: a esfera privada, a esfera pública civil e a esfera pública estatal. Actualmente, está na ordem do dia da filosofia e da sociologia políticas (por exemplo com Habermas) dar grande importância à “esfera pública” cidadã, por distinção da esfera (também pública) estatal. Chegando-se a querer ver naquela uma função cidadã de “controlo constitucional” desta.
8. Mas regressando mais concretamente ao assunto: o que se tira da norma constitucional citada sobre o ensino nas escolas estatais é que o ensino “não pode ser confessional”; isto é, nem confessional de uma dada “crença religiosa”, nem confessional de uma “crença laica”. Porque a laicidade é, como vimos, uma escolha (positiva) em matéria religiosa (tal como escolha positiva também é a dos crentes); que não se confunde com uma posição negativa (adversária) das confissões religiosas. Esta posição negativa é “laicismo”, não é laicidade. Como há tempos distinguiu muito bem o Padre e Prof. Anselmo Borges, na sua habitual coluna de jornal (DN, 9-Abril-2016). Permita-se-me uma citação alongada, dada a sua autoridade. Com que termino.
9. «A laicidade do Estado, isto é, a sua neutralidade confessional, é essencial para garantir a liberdade religiosa de todos: ter esta ou aquela religião, não ter nenhuma, mudar de religião. Aliás, a laicidade é exigida pela própria religião. Porque confundir religião e política significa ofender a transcendência de Deus, e também porque só homens e mulheres livres podem professar de modo verdadeiramente humano uma religião.»
Nesse mesmo artigo, o seu Autor cita um “prestigiado filósofo muçulmano Abdennour Bidar”, que pede ao seu “querido mundo muçulmano” uma laicidade plena. E depois interpreta e comenta: «Bidar exige, pois, a laicidade plena. Mas isso não significa laicismo. Os intelectuais ocidentais [escreve o Autor citando Bidar] “vivem em sociedades tão secularizadas que não se lembram, de modo nenhum, de que a religião pode ser o coração do reactor de uma civilização humana. E que o futuro da humanidade passará amanhã não só pela resolução da crise financeira e económica, mas de modo bem mais essencial pela resolução da crise espiritual sem precedentes que atravessa a humanidade inteira». E o Padre e Prof. Anselmo Borges conclui : «Não é com um laicismo despudorado, que chega a escandalizar-se pelo facto de o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, católico praticante, ter beijado o anel do Papa Francisco, que se vai superar a nossa desconfiança niilista.»