“Acorda para a vida!” talvez seja só uma frase estafada. Mas usamo-la. Duma forma que quase roça o imperativo. “Acorda para vi(ii)da!…”. Será mais assim que a usamos. Não tanto como um comentário mais ou menos persuasivo. Mas com o seu quê de desvalorização entre as sílabas que a ligam. Prolongando-se a parte final, no modo como se estica o i. Como se com isso se acentuasse um tudo-nada de superioridade que reclamamos para nós, nesse momento.

Apesar disso, “Acorda para a vida!” é duma sensatez desconcertante. Porque supõe que, por um motivo qualquer, mais ou menos trivial, vivemos adormecidos para as coisas importantes que nos passam ao lado. Ou, inclusivamente, que nos atravessam, de uma ponta até à outra. E, de facto, vivemos! Dispersos. Pouco apontados ao que é essencial. Desapontados; será talvez assim. Atulhados em coisas por dizer. Sobretudo às pessoas indispensáveis na nossa vida. Que estão ali. Ao pé de nós. Que anseiam por tudo o que lhes diga respeito. E que muito raramente merecem da nossa parte todas as palavras que era suposto que, dedicadamente, lhes disséssemos.

Às vezes, da mesma forma que imaginamos ter o tempo todo, a ponto de nada se tornar urgente, as palavras que guardamos parecem eternizar-se numa espécie de silêncio que nos afasta. Apesar de tudo aquilo que nos liga. Como se esperássemos que, mais tarde ou mais cedo, chegasse uma altura em que o coração, de modo próprio, se destrancasse e, num ribombo, falasse como um trovão. E – então, sim – lhes confiássemos o melhor do melhor que temos para lhes dizer. Para que, depois, nós e elas nos merecermos.

Parece que passamos o tempo a medir forças entre o rumo que queremos dar à nossa vida e as direcções que o destino parece tomar. Não sei se será, sobretudo, por isso, mas passamos o tempo a deixarmo-nos ir. Ou a deixarmo-nos levar. A ponto de serem sempre mais as palavras que nunca lhes dizemos do que aquelas que, um dia atrás do outro, damos às pessoas mais importantes para nós. Elas não deixam de ser, sobretudo, a nossa casa. Mas, duma forma incompreensível (considerando aquilo que silenciamos por entre tudo o que era indispensável dizer-lhes), agimos como se, com os nossos silêncios, estivéssemos a prepararmo-nos para fugir de casa.

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Todos os dias me confronto com pessoas que chegaram tarde às suas relações mais preciosas. Ou que só as valorizam quando as perdem. Como se nunca tivessem tido tempo para dizer a um pai, por exemplo, o quanto o amavam ou admiravam. Ou para que, de forma explicita e cristalina, confiassem a gratidão a uma mãe por tudo aquilo de que se privou para nos dar.

Todos os dias, fico no desconforto de observar que falamos, sobretudo, por à-partes, com pequenas metáforas, por breves murmúrios, por meias-palavras, resmungando entredentes ou falando de amor nas entrelinhas. E, com isso, alimentássemos a ilusão que não deixamos de falar sobre todas as coisas, por mais que elas raramente sejam percebidas com claridade.

Mesmo quando falamos dum casamento – que é muitíssimo mais uma relação amorosa que, unicamente, um casamento – somos desmazelados na forma como falamos. Depois de termos namorado e falado e falado, vêm os silêncios. E passamos a ter formas entarameladas de dizer: “amo-te”. Ou, até, de manifestarmos desilusões, ressentimentos ou mágoas. Entregando-nos a uma resignação silenciosa de quem aceita as coisas, sem se dar conta que, sempre que as aceitamos, desistimos de uma pessoa. Acumulando pedacinhos de indiferença, uns sobre os outros. Como se a indiferença não fosse o idioma da solidão.

Todos os dias em que pergunto, por exemplo, a um adolescente qual foi a última vez que deu um abraço a um dos pais ou – só porque sim! – lhes disse que os ama ou fala daquilo que cogita sobre eles, respondem-me que não vale a pena. Que só não o fazem porque os pais também nunca tomaram a iniciativa desses gestos. Mas que os pais sabem aquilo que eles sentem… Por mais que, à custa de tantos silêncios, alimentem a ilusão de que os pais não os conhecem.

A verdade é que todos vivemos atulhados de coisas por dizer. Em relação aos nossos filhos, por exemplo, sempre que olhamos para trás, temos a sensação de ter falhado aqui e acolá. E na forma como fomos omissos num sem número de coisas. E exagerados ou destemperados, noutras. E que, mal eles crescem, baralhamos a sua liberdade com a forma como aceitamos aquilo com que, sempre que não lhes dizemos tudo o que sentimos, desistimos deles. A ponto de muito cedo termos guardado demasiadas palavras que nunca lhes dissemos. Da mesma forma como eles o fazem connosco.

De vez em quando, vejo adolescentes já muito crescidos a reconhecer que, num dia em que um dos pais lhes morra, ficarão tristes; claro. Mas não tanto assim “de rastos”. Porque, com o tempo, os foram perdendo. Como se, à conta de tudo o que uns e outros deixaram de dizer, se tivessem tornado desconhecidos mas demasiado familiares. Assumindo, doutra maneira, que as pessoas que melhor nos conhecem são aquelas que menos sabem de nós.

Passamos a vida a afastarmo-nos. Sem nunca se dizer adeus. É o que parece.

E é aí que eu acho que nos falta a humildade de reconhecer que os silêncios das palavras que nunca lhes dissemos, são construídos pelas pessoas indispensáveis à nossa vida. E por nós, também.

É por isso que não entendo porque é que se torna tão difícil falar. Falar apesar das palavras que nunca lhes dissemos. Falar apontando-as para as pessoas indispensáveis para nós. E contornando, um atrás do outro, todos os nossos desapontamentos. Falar é acordar para a vida. E, vendo bem, é uma forma delicada de pedir desculpa. Ou será que não nos damos conta que são demasiadas as vezes em que só mesmo quando se perde alguém é que descobrimos a urgência das palavras que nunca lhe dissemos?