Eu possuía preciosamente um amigo, a quem a história da ciência e das navegações muito deve. Não era só eu. Éramos muitos os que o conhecíamos, estimávamos e admirávamos. Despedimo-nos dele este domingo, após uma curta cerimónia. Tinha 94 anos. Chamava-se António Estácio dos Reis.

António Estácio dos Reis – Fotografia graciosamente cedida por Fernando Correia de Oliveira, estudioso da história da relojoaria

A capela da Marinha, na Ribeira das Naus, em Lisboa, foi pequena para conter os seus poucos familiares, os seus camaradas e os seus muitos amigos. Pouco se disse, pouco se podia dizer. Mas todos sabíamos o muito que haveria a contar.

Depois da geração de Joaquim de Carvalho, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota, Luciano Pereira da Silva e Luís de Albuquerque, que revisitaram as fontes e deram a conhecer o papel que a ciência teve nos Descobrimentos, dir-se-ia que tinha ficado uma lacuna na historiografia. Hoje há uma nova geração e um renovado interesse pela história da cartografia e da navegação astronómica. Entre uma geração e outra, destaca-se o nome do comandante Estácio dos Reis.

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Depois de uma distinta e ativa carreira na Marinha Portuguesa, tornou-se adido de Defesa em Paris, onde conviveu com o diretor do Museu Naval francês e desenvolveu um especial interesse pelos instrumentos de navegação antigos. De volta a Portugal, trabalhou na Biblioteca e no Museu de Marinha, onde anos de esforços o levaram a construir uma coleção de astrolábios náuticos que se tornou a maior do mundo. Escreveu. Escreveu muito. Explicou a importância dos astrolábios para as Descobertas. Atraiu investigadores para o estudo dos instrumentos científicos antigos. Publicou muitos estudos, monografias e livros. O seu “Medir Estrelas” (CTT, 1997), em edição bilingue, tornou-se um clássico.

A sua mais conhecida contribuição para a história da ciência portuguesa deverá ser a descoberta de um quadrante antigo munido de um nónio, o único que hoje se conhece da época de Pedro Nunes (1501-1578). Esta descoberta comprovou o interesse prático pela criação do nosso matemático, muito antes ainda dos melhoramentos que levaram à simplificação de escalas, com uma fixa e uma móvel, como ainda hoje se usa.

O Quadrante de Kynuyn com as 45 escalas do nónio original – Réplica existente no Museu de Marinha

O instrumento descoberto por Estácio dos Reis é munido de 45 escalas, construídas segundo as instruções originais do nosso matemático. É o quadrante de Kynuyn, de 1595. Encontra-se no Instituto e Museu de História de Ciência, em Florença. Graças ao esforço do nosso comandante, foi feita uma réplica que se encontra no Museu de Marinha, em Lisboa. A história da descoberta, com muitas peripécias entre Lisboa, Nova Iorque e Florença, é um testemunho da grande sagacidade e persistência de Estácio dos Reis.

Não é pouca coisa ser o descobridor do único exemplar da época com um nónio original. Nem é pouca coisa ser o impulsionador da maior coleção de astrolábios existente no mundo. Mas Estácio dos Reis passou o resto da sua vida a recolher documentos, a analisar instrumentos antigos, a escrever e a publicar.

Nónio na versão de Vernier, com uma escala fixa e uma móvel, como ainda hoje se usa

Os seus amigos relembram tudo isto com o orgulho de terem privado com este homem de excepção. Mas todos eles destacam, em primeiro lugar, as suas qualidades humanas, a sua disponibilidade para os outros, o seu otimismo e o seu gosto pelo diálogo.

Conheci-o por acaso, por um acaso feliz – uma serendipidade, como ele gostava de dizer. Escrevia eu na altura para o Expresso, onde publicava artigos de divulgação científica. Num deles, de 14 de agosto de 1998, em que explicava alguns aspetos da navegação astronómica, havia uma incorreção numa legenda. Passados alguns dias recebi uma carta em que, muito diplomaticamente, se perguntava se a legenda estava correta. Adiantavam-se as razões da diplomática dúvida. Vinha assinada: Estácio dos Reis.

Respondi agradecendo e notando – claro! – que o reparo tinha toda a razão de ser. Na volta do correio recebi outra carta. Junto, vinha a oferta do seu livro “Medir Estrelas”. Foi, como na cena final de Casablanca, o começo de uma bela amizade. Correspondemo-nos durante anos, primeiro por carta, depois por correio eletrónico, e sempre que eu vinha a Lisboa procurávamos marcar uma conversa.

O comandante dizia que tinha ficado surpreendido e agradado por ter recebido uma resposta. Confessava que habitualmente não lhe respondiam quando ele fazia algum reparo. Eu confessava que era raro receber contributos.

Com um grupo de amigos – muitos deles historiadores da ciência e da náutica, outros, como eu, simples curiosos – ganhei o hábito de ir a um restaurante, em Belém, festejar os seus anos, que os fazia a 27 de setembro. Era um ritual, um ritual alegre, sempre novo e instrutivo. Este setembro, já não o teremos.