Olhando para as catástrofes naturais e para todas as realidades que nos atravessam ou interpelam pela quantidade de vítimas que provocam, parece difícil escrever para dar só boas notícias. É muito difícil, de facto, mas não é impossível.
Na semana passada foi publicamente assinado um compromisso entre líderes de 24 grandes empresas, todas elas com extraordinário impacto na comunidade. Algumas destas empresas têm muito peso na economia nacional e expressão na economia internacional e, por isso mesmo, este ato simbólico foi a primeira de uma série de muito boas notícias.
Num fim de tarde caloroso que já anunciava a Primavera, 24 homens e mulheres que gerem 24 das maiores empresas que operam em Portugal, subiram ao palco no átrio principal do campus da Nova SBE, em Carcavelos, para assinar um documento em que se comprometem a reforçar nas suas organizações a empregabilidade de pessoas com deficiência.
Vale a pena enunciar as empresas, pois são elas que vão rasgar a paisagem e fazer muita coisa acontecer. São elas que vão criar uma narrativa nova e inovadora na área da inclusão. São elas que vão inspirar muitas outras. Por ordem alfabética, aqui ficam: Accenture, ANF, Ascendi, Brisa, CTT, EDP, El Corte Inglés, Fidelidade, Galp, Grupo Manuel Champalimaud, Grupo Pestana, Grupo VIPS, Starbucks, IBM, Jerónimo Martins, José de Mello Saúde, Médis, Microsoft, Millennium BCP, Município de Cascais, Nova SBE, Prio, Randstad, Santander e Vieira de Almeida.
O momento do compromisso público foi extraordinariamente solene e a coleção de assinaturas é de extrema relevância pois os níveis de desemprego de pessoas com algum tipo de limitação são elevadíssimos.
Falo de todo o tipo de deficiência, inata ou adquirida. Ou seja, falo de muitas, muitíssimas pessoas que nasceram sem qualquer condicionante física ou mental, mas por sofrerem doenças graves, progressivas, crónicas e incuráveis, ou por terem sido vítimas de acidentes na estrada, ou até no seu próprio local de trabalho, passaram a viver a condição de pessoas doentes ou deficientes, a quem poucos valorizam e quase ninguém dá emprego. Algumas delas perderam os empregos que tinham e onde sofreram os acidentes de trabalho!
Andando um pouco mais para trás no tempo e focando ainda nestes cuja deficiência foi adquirida, vale a pena sublinhar que a vida, para todos eles, mudou num instante. Cada uma destas pessoas sentiu na pele a dolorosa experiência de uma mudança radical, dramática e muitas vezes traumática, de um momento para o outro. Seja porque foram vítimas de atropelamentos e acidentes na estrada ou no trabalho, seja porque sofreram acidentes cardiovasculares ou traumatismos crânio-encefálicos, todas elas perderam faculdades num abrir e fechar de olhos. E todas estas pessoas, de todas as idades, passaram e passam por um verdadeiro calvário de convalescença e recuperação que muitas vezes impõe sucessivas cirurgias, tratamentos dolorosos e longos períodos de fisioterapia.
Todos eles podiam ser nossos filhos, nossos pais, nossos irmãos, nossos amigos, nossos vizinhos ou nossos pares na empresa. Todos eles podíamos ser nós! Ou podemos vir a ser nós, quero dizer.
Quanto aos que nasceram com deficiência física ou mental, também eles são desvalorizados no mundo do trabalho e raramente alguém se atreve a quebrar as barreiras visíveis e invisíveis para lhes dar uma oportunidade. Vivem rotulados e sempre com rótulos negativos, altamente depreciativos. Toda e qualquer ‘tag’ que se cole à pele de quem quer que seja é fonte de preconceitos e de exclusão social e profissional. É terrível e é verdade. Basta falarmos de paralisia cerebral, por exemplo, para paralisar os que de nada sofrem, a não ser de uma inclinação natural para terem medo de tudo e todos os que lhes parecem diferentes. É pena, pois é destes, dos que nada sofrem na pele, que se esperaria muito mais e muito melhor. E é a estes que se pede para acolher e valorizar quem não pode ser definido – e muito menos reduzido! – à sua doença ou deficiência.
– Aprendi que o que nos define são as nossas capacidades e nunca as nossas incapacidades! – diz Francisco Lamy, 20 anos, estudante de Economia na NovaSBE.
Francisco foi um dos primeiros alunos da Nova a aceitar o desafio de ser ‘peer’ da Filipa, uma rapariga que aos 25 anos foi vítima de TCE – Traumatismo Crânio Encefálico, e está ligada à Associação Novamente. Durante um ano letivo, o Francisco e a Filipa ajudaram-se mutuamente a construir um bom CV, a preparar entrevistas de emprego e a estruturar um conhecimento sólido das suas capacidades, com vista a encontrarem, no futuro, um trabalho à sua medida. Um emprego onde possam acrescentar valor com os seus talentos e capacidades.
Não foi só o Francisco que ajudou a Filipa, note-se. O próprio Francisco faz questão de reforçar isso.
– O ‘efeito espelho’ torna o projeto Peer2Peer muito especial, pois a ajuda é mútua. Às vezes sou eu que preciso da Filipa e outras vezes é ela que precisa de mim.
As competências e as experiências do Francisco são complementares às da Filipa, uma vez que ela é mais velha que ele e sofreu o TCE quando tinha 25 anos.
– Hoje em dia lido com naturalidade com pessoas com deficiência e sou capaz de valorizar as suas capacidades sem qualquer tipo de receios ou preconceitos.
Bastou ao Francisco esta proximidade com a Filipa para a compreender melhor a ela e a tantos outros como ela, para ‘calçar os seus sapatos’ e para perder os medos de se confrontar com pessoas doentes ou com deficiência. Mais, ao fim de pouco tempo ficaram verdadeiramente amigos e essa amizade é um tesouro para cada um deles. Não se trata apenas de uma relação funcional, com sentido profissional, mas de um laço que se reforça no dia a dia, nos momentos em que estão juntos ou conversam e trocam ideias por mail ou telefone.
O Peer2Peer é apenas um de vários projetos do ICF – Inclusive Community Forum sobre o qual escrevi uma crónica logo quando foi criado. No primeiro ano de existência do ICF houve 10 estudantes universitários voluntários para este sistema de ‘buddy’, digamos assim. O Francisco Lamy foi um deles e a experiência foi tão iluminante e transformadora que é ele que está a co-coordenar o novo semestre, a recrutar e a formar os novos voluntários.
Rui Diniz, o fundador e mentor do ICF, também subiu ao palco no dia do compromisso público de líderes e as palavras dele ficaram a fazer eco nas centenas e centenas de pessoas que fizeram questão de assistir em direto.
– “Há quase 7 anos a Carmo e eu adotámos o Bernardo, o mais novo dos nossos 5 filhos. O Bernardo tem 99% de incapacidade – não vê, não anda e não fala, entre várias outras dificuldades.
Durante este tempo a nossa história com o Bernardo tem sido muito boa quer na perspetiva dos nossos 4 filhos mais velhos e de nós próprios quer na perspetiva do Bernardo.
Mas naturalmente que este caminho não é isento de desafios e dificuldades e em múltiplas ocasiões fomos confrontados e surpreendidos porque nos parecia que algumas das questões que enfrentávamos não tinham sido resolvidas de forma clara e estruturada antes de nós, apesar de terem que ser necessariamente comuns a milhares de famílias como nós.
Quantos com os mesmos problemas que nós, mas com circunstâncias globais mais difíceis, se veem tantas vezes impotentes para ultrapassar essas dificuldades?”
Nesta lógica e com o sentido de contribuir para “identificar soluções estruturadas e escaláveis que resolvessem algumas das barreiras a uma maior inclusão de pessoas com deficiência”, desafiaram a Nova SBE.
– “Sentimos que seria necessário ter o apoio de uma instituição orientada à análise e estudo rigoroso dos problemas, que contasse com recursos e talento para estudar estes temas e desenvolver abordagens e metodologias adequadas e, mais importante, que estivesse disponível e empenhada no contexto dos seus valores e objetivos, para ter impacto na comunidade em temas como este”.
A Nova SBE acolheu o projeto com entusiasmo e nasceu o ICF. Passado pouco mais de um ano já colheu muitos frutos e um deles foi certamente o adorável compromisso público de lideranças que está a criar um admirável mundo novo nas empresas ‘só’ por validar e valorizar as competências e capacidades de pessoas com deficiência inata ou adquirida. E esta é uma boa notícia que chega no meio de tantas catástrofes naturais e artificiais.