Já não sei quem é que dizia que não há pior problema do que ignorar que há problema. Parece uma charada, mas é uma verdade literal. E um princípio constante para muitos cidadãos com responsabilidades políticas.

Tomemos como exemplo o nosso Primeiro Ministro e o seu inesperado mea culpa, captado no momento em que atravessava os corredores da Assembleia da República e foi interpelado por pessoas em cadeira de rodas.

Salvador Mendes de Almeida, fundador da Associação Salvador, tinha um dossier com 813 reclamações concretas, reveladoras do inconcebível incumprimento da Lei das Acessibilidades, que queria entregar em mão ao PM. Temos uma lei que até é razoavelmente boa, mas como não é cumprida nem fiscalizada, acaba por ser francamente má. E como o Estado é o principal incumpridor, importa dar a conhecer os casos a quem tem poder de legislar e mandar cumprir.

– Sabe o que é? Eu acho que muitas vezes as pessoas não têm sequer consciência, não têm sequer consciência do problema.

Mesmo sem se dar conta, o PM sublinhou o verdadeiro problema ao repetir duas vezes na mesma frase aquela parte do ‘não têm sequer consciência’. Saiu-lhe bem. Foi certamente um lapsus linguae, mas saiu-lhe mesmo bem porque foi o primeiro a reconhecer a sua inconsciência. E a assumi-la publicamente.

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Pertinente, Salvador Mendes de Almeida começou por fazer perguntas diretas:

– O que é que nós, enquanto cidadãos com mobilidade reduzida, o que é que podemos fazer mais para ajudar a resolver o problema? Mais barulho, mais reclamação?

Paternalista e com aquela sua bonomia estratégica, António Costa respondeu:

– Eu acho que é preciso mais pressão também vossa!

Estranha resposta de um Primeiro Ministro. Fazer pressão sobre quem, se ele é quem mais pode e deve sentir-se pressionado a agir e a mudar a realidade? É preciso ligar ao Papa? Mandar um mail a Donald Trump? Tentar sentar Guterres numa cadeira de rodas e condicionar a sua mobilidade nas Nações Unidas?

O que é que António Costa quer dizer quando diz a um deficiente que se desloca em cadeira de rodas que deve fazer mais pressão? Não é isso que ele e outros como ele estão a fazer? Não foi isso que os levou a ensaiar um treino de Crossability nas escadarias da AR e a atravessar os mesmos corredores da AR até chegarem a ele? Ou ele afinal não manda nada e também não quer saber de nada?

Tão indecifrável é a resposta como o próprio António Costa. Mal tinha acabado de reconhecer que o problema é as pessoas não terem consciência do problema e já se estava a fazer outra vez de inconsciente. Isso não vale! Não podemos brincar com coisas sérias. Sabemos que temos um Primeiro Ministro que facilmente sorri e até é capaz de ir alegremente de férias quando o país está a arder, mas há limites para tudo e até António Costa se indignaria se, em vez do Salvador Mendes de Almeida e tantos outros como ele, fossem os seus próprios filhos obrigados a andar em cadeira de rodas meses, anos, uma vida inteira. Se tivessem perdido a mobilidade e nunca mais a pudessem recuperar.

Realmente muitas pessoas não têm sequer consciência do problema, mas quando alguém toca no ombro de uma destas pessoas, porventura a mais estratégica para gerar mudança, e a faz parar para lhe entregar um pesado dossier com 813 casos concretos de incumprimento de uma lei, recolhidos com seriedade ao longo de um ano, através da aplicação +Acesso para Todos, criada pela Associação Salvador, o mínimo que se pode esperar de um cidadão que tomou o poder com argumentos de mudança e ação consciente, é que agradeça o gesto e prometa debruçar-se sobre o dossier.

A reação de António Costa devia ter sido curta e incisiva:

– Muito obrigado por me ajudarem a conhecer melhor a vossa realidade. Ainda bem que vieram ter diretamente comigo. Prometo dar sequência à vossa ação de sensibilização.

Se tivesse andado por aqui, com mais palavra, menos palavra, teria estado à altura do momento e teria sido tão vertical como os que, mesmo sentados e extraordinariamente condicionados, lhe travaram o passo sem queixas nem azedumes.

Dá que pensar a atitude de alguém que diariamente esbarra em obstáculos e barreiras arquitetónicas, mas interpela o PM com um sorriso e ainda lhe consegue perguntar o que pode fazer para o ajudar a resolver um problema tão grave como este de termos um país que não é acessível para todos. Um país que exclui os mais frágeis e vulneráveis.

Na sua inconsciência, António Costa não sabe nem imagina a frustração, a dor e a derrota que sentem diariamente todos os que não podem sair de casa porque não conseguem deslocar-se sozinhos. Tão-pouco adivinha o que é conseguir sair e chegar ao passeio, mas depois não poder atravessar ruas nem avenidas porque as passadeiras foram invariavelmente mal rebaixadas. Muito menos concebe o que sentem todos aqueles que vivem privados de entrar em lugares públicos e nunca podem ir a restaurantes ou a casas de banho públicas porque a lei só obriga a adaptar espaços com mais de 150m2.

António Costa não sabe nada disto e aparentemente está a anos luz da realidade real de uma lei que abre mil exceções para monumentos e edifícios classificados onde não há apenas museus e espaços de lazer, note-se. Edifícios onde funcionam repartições de Finanças e sedes de serviços públicos a que todo e qualquer cidadão deveria poder aceder. Também não faz a menor ideia do que é ficar à chuva e ao frio, à espera de transportes públicos que demoram e, quando finalmente chegam, não podem levar as pessoas com mobilidade reduzida por terem os seus mecanismos de acessibilidade avariados. E não lhe passa pela cabeça que há paraplégicos que são frequentemente obrigados a arrastar-se pelo chão com a cadeira de rodas às costas porque os lugares de estacionamento reservados para deficientes foram ocupados por selvagens que não respeitam nada nem ninguém. E por aí adiante.

Só no dia em que esta realidade tocar a família de António Costa (e, neste ponto, incluo todos os ‘Antónios Costa’ desta vida) ou se fizer sentir em todo o seu esplendor no círculo mais ou menos alargado dos amigos lá de casa, é que alguma coisa poderá mudar. Até lá, o Primeiro Ministro vai continuar a sorrir e a pedir aos deficientes que façam mais pressão para despertarem a consciência das tais pessoas que ele sabiamente avisa que não têm sequer consciência do problema.