No dia 27 de fevereiro de 2018 escrevi no Observador um texto intitulado O Estado-exíguo e a reforma do Estado onde fazia uma referência ao livro do Prof. Adriano Moreira A circunstância do Estado exíguo. Este ano, 2022, o Prof. Adriano Moreira completa 100 anos de vida e para lhe prestar uma singela homenagem fui buscar esse texto de 2018 para fazer uma atualização do conceito de Estado-exíguo à luz das grandes transições que atravessam esta década e as próximas até 2050.

O exógeno e o exíguo, este é o binómio da nossa existência, entre o mar e a terra, a terra e o mar. Agora, em terra firme, sem um espaço vital para crescer procuramos de novo o mar, desta vez através do alargamento da nossa zona económica exclusiva. Hoje, porém, perante o impacto das grandes transições – climática, ecológica, energética, digital, migratória, demográfica, digital, laboral, sociocultural, securitária – o lado exógeno parece, mais uma vez, tomar conta da nossa ocorrência. Neste contexto, a reforma do Estado-exíguo é um assunto recorrente no espaço público, em especial quando associamos Estado-exíguo e reformas do Estado e numa conjuntura em que o secular conceito estratégico nacional parece cada vez mais redundante.

A minha tese é a de que a nossa condição de Estado-exíguo está muito associada ao rotativismo bipartidário da 3ª república e à omnipresença do partido-estado onde se acomodam, à vez, os interesses corporativos dos dois maiores partidos portugueses. Este tacticismo político-partidário e corporativo impede que se formem compromissos históricos bipartidários com vista à realização das grandes reformas do Estado-administração. Esta é a circunstância interna do Estado-exíguo. Acresce que esta circunstância interna do Estado-exíguo resulta agravada por uma circunstância externa, exógena, digamos, extraterritorial, que nos escapa em boa medida e que põe em causa a nossa soberania doméstica e territorial. Refiro-me aos impactos das grandes transições e a alguns riscos globais que um pequeno país não controla e que condicionam profundamente a sua margem de discricionariedade.

E, assim sendo condicionado por esta dupla circunstância, interna e externa, está o Estado-administração português em condições de realizar, com êxito, as designadas reformas estruturais do Estado, agora que o país está dotado de meios financeiros substanciais do PRR e do PT 2030 como nunca, antes, tinha acontecido?

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E eis que estamos, mais uma vez, entre o exógeno e o exíguo. Na nossa história recente, o partido-estado sofreu dois abalos sísmicos de intensidade elevada, em 1978-79 e em 1983-85. O problema foi ultrapassado com a assinatura de duas cartas de intenções com o FMI e, no plano interno, por dois cortes profundos dos salários reais que fizeram o ajustamento económico sem cortes dos salários nominais. A emissão de moeda própria, a ilusão monetária e a inflação (acima dos 20%) tornaram o exercício de ajustamento aparentemente mais suportável. Mais recentemente, o programa de assistência económica e financeira imposto pela Troika desferiu um golpe profundo no partido-estado, aumentou a nossa exiguidade e, sobretudo, ameaçou a sua estabilidade, segurança e previsibilidade.

Acresce que os próximos passos da união económica e monetária (UEM), sobretudo a união orçamental, também não garantem as condições que conduziram à formação da zona de conforto do partido-estado. Com efeito, a equação orçamental que até hoje alimentou o partido-estado está definitivamente posta em causa pelo algoritmo macroeconómico europeu tal como pode ser deduzido do tratado orçamental, do pacto de estabilidade, do semestre europeu e outra legislação europeia nesta matéria (Packs). Isto é, a nossa eterna equação da dívida, pública e privada, terá de ser substituída e dar lugar à equação da poupança, do investimento e da exportação, de tal modo que o crescimento do PIB aumente a receita fiscal e reduza o encargo real e nominal de dívida pública e privada.

É certo, até 2030, as subvenções a fundo perdido do PRR e do PT 2030 podem-nos proporcionar mais um compasso de espera nesta dupla circunstância da nossa existência. Mas não devemos facilitar, por que se o fizermos as duas circunstâncias, interna e externa, farão ruir qualquer tentativa de equação orçamental que procure responder aos problemas estruturais da sociedade portuguesa, a começar pela organização política do Estado-administração. Esta é verdadeiramente a nossa derradeira oportunidade para escapar à exiguidade do partido-estado e à extraterritorialidade das grandes transições.

Perante esta dupla circunstância, e não obstante os efeitos líquidos positivos da turistificação do território, o partido-estado e o estado-exíguo, tal como os conhecemos ainda hoje, não podem assegurar ao sistema de partidos e à sociedade portuguesa a reprodução das suas condições de estabilidade, segurança e previsibilidade que, com alguns percalços, sempre os caracterizaram nos últimos quarenta anos. Sem moeda própria e com reduzida autonomia orçamental, com taxas de inflação mais altas e taxas de poupança interna cada vez mais baixas, com níveis muito elevados de dívida pública e privada e baixa capitalização empresarial, o sistema bancário em situação difícil por mais uma vaga de crédito mal parado e com limites orçamentais para cumprir impreterivelmente no quadro do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental, estamos numa situação económica, orçamental e financeira sem escapatória.

O partido-estado (os partidos do regime) e a sociedade portuguesa devem olhar-se olhos nos olhos e decidir o que fazer em relação à organização política do Estado, à sua organização administrativa, à organização do setor empresarial do estado, à estrutura da despesa fiscal e respetivos benefícios empresariais, à próxima geração de investimentos públicos de rede e à estrutura da política de rendimentos onde se inclui a fiscalidade direta e a segurança social. No conjunto, uma cura de eficiência e emagrecimento correspondente a uma redução significativa no peso da despesa pública total no PIB até 2030, mas em linha com a receita fiscal que é possível arrecadar numa conjuntura positiva de uma década de crescimento moderado do produto em redor de 3% em termos reais, o que está perfeitamente ao nosso alcance.

Se estas expetativas moderadamente otimistas não se confirmarem ficaremos nas malhas dos mercados internacionais e da ajuda europeia em regime de liberdade condicional e sob condições estritas. Se assim acontecer, o Estado-exíguo não estará disponível para grandes reformas de Estado. O mesmo se diga em relação às próximas fases da integração europeia, correspondentes à segunda fase da união económica e monetária e ao lançamento das primeiras pedras da união política europeia (UPE), por mais europeu que seja o discurso do primeiro-ministro em matéria de impostos europeus e novos recursos próprios.

Oxalá o crescimento económico ajude, não obstante o paradoxo verosímil, e bem português, de que um crescimento mais elevado possa abrandar ou mesmo adiar as reformas do Estado. O partido-estado, esse, não vai desistir assim tão facilmente.