1 O joio desconcentra-me. Os dias andam exigentes, não estão para distrações. Fiz um passeio no parque, atenta à observação deste tempo político: lembrando-me de todos os quadros da vida portuguesa de há mais de cinquenta anos, talvez não me lembre de uma simultaneidade tão tóxica de ingredientes igual à de hoje. Como ocorre com as infecções do organismo, o ar está doente.
Infectado de irracionalidade e a política detesta-a (corre sempre mal); de escorregadia destemperança e a política precisa do contrário; de má-fé e a política não costuma ser complacente; de imaturidade e a política dispensa-a; de indecisos zangados ou vendilhões do templo, mas a política nunca deixa de mandar a factura (normalmente alta).
2 Sucede que o que aí está, não pode continuar a estar. Não há um português – nem os “interessados” – que suporte um minuto mais “disto”. Dançaram-se demasiadas valsas no verão, o outono continuou com polcas desastradas mas ambas, valsas e polcas, já não podem mais ser dançadas. Basta! Não há passeio no parque que varra este ar de suspeita e acusação – de torpeza para ser mais claro – que sopra em ventos cruzados. Sem propósito mas com consequência, porque em vez de política há birras, e no lugar do critério está a desconfiança.
E em vez de país, há cálculo. PS e Chega irmanam-se no cálculo e na ambição do poder: o primeiro no seu vício, oito anos é muito ano; o outro, na sua ânsia. Como é que Santos e Ventura tão diferentes na ideologia, nos objectivos, nas propostas mas também na personalidade – lideranças, truculência, uso do verbo e do gesto; segurança/ insegurança, manha; na necessidade de partilhar uma liderança (como Santos) e na intencional solidão dessa liderança (como Ventura) –, como é que eles conseguem ambos desaguar num mesmo porto chamado insuportabilidade? Somando (ainda?) dúvidas, críticas, hesitações, recusas? E tendo (ainda?) a necessidade de mais “diálogo” com o governo. E querendo (ainda?) mais tempo, como se estivéssemos às portas do verão e não de uma decisão crucial para o país (talvez porém mais crucial ainda para cada um deles). Dois homens – por razões diferentíssimas – de difícil trato. Infeliz coincidência, reparei eu no passeio pelo parque.
3 Os do Chega têm um líder que não sabe – literalmente – o que há-de dizer aos seus deputados, nem para quê. Temos ouvido tudo e o seu contrário a uma velocidade vertiginosa e vertiginosamente histriónica. Apesar de serem cinquenta parlamentares, e passados já alguns meses, continua-se – à excepção de três ou quatro deles – sem saber quem são e o que fazem os outros 46, a não ser temer sair do parlamento. Mas há uma coisa que se sabe: para lá do biombo da sacrossanta frase “estamos preparados para eleições” esconde-se um nada secreto medo que isso venha a acontecer: parte do eleitorado – não tenho dados para a quantificar – do Chega não aprecia nem aplaude tanta hostilidade ao PSD. As europeias mostraram-nos isso ao espelho. E ainda menos apreciou a festiva cumplicidade de algumas votações parlamentares PS+Chega para menorizar o mesmo PSD. O desnorteio enraivecido nunca foi bom conselheiro.
4 Sabendo há muito o PS realmente dividido internamente tive por duas vezes – há cerca de dois meses e há cerca de duas semanas – ocasião de transmitir a minha intuição a um dirigente socialista sobre a posição do seu líder: Pedro Nuno Santos não queria aprovar o orçamento, comentei eu ao meu interlocutor. Feitas contas e cálculos, não queria. Como esse PS – erro deles – não confia em mim, fiquei a falar sozinha, mas não teve a menor importância: estou sempre tranquila perante o óbvio. Além de que o que me interessava era meramente sinalizar que tinha compreendido tudo.
Tudo? O essencial: não fosse o diabo tecê-las e Luís Montenegro começar um dia a governar e não só a distribuir e não seria tão cedo que o grande PS, dono disto tudo, voltaria ao poder. Reencontrando-se com os “seus” no aparelho do Estado e na sua administração, onde dezenas e dezenas foram prestimosamente colocados nos últimos anos, em diversas escalas e graus de importância. Uma reencontro de família. Se houvesse um parque perto, dariam um belo passeio.
Mais eis que agora o líder arreganhou o dente, a plateia dos seus críticos não gostou, gerou-se para aí um alarido vestido de indignação: o novo líder deste novíssimo PS quer o coro afinado (desde que a seu favor). Subiu um degrau na escada dos erros, desceu um lance no entendimento do que é liderar uma família política.
Lembro-me de duas visitas não apressadas, feitas a Pedro Nuno Santos – que não conhecia – no início do verão de 2023, num gabinete da ala nova da Assembleia da República. A memória que guardo, sendo indiscutivelmente simpática, destoa porém inteiramente dos dias que correm. E mesmo que há dias, na Gulbenkian, na apresentação da reedição dos livros que fiz com o dr. Soares, tivéssemos ficado lado a lado, cruzado algum ironia política e trocado impressões com a apresentação da minha família pelo meio, aquela difusa sensação de desconformidade que eu já notara não se alterou: o deputado e ex-ministro do PS de 2023 não se parece com o condutor político de hoje. Não é líder quem quer nem há chefes sem competência. Um dia voltarei a isto porque é interessante. Mas antes desse dia, só há uma pergunta, a mesma que os portugueses fazem: que quer Pedro Nuno Santos? Ou melhor: que quer MAIS o líder do PS se o orçamento – para gáudio do PS e mal do país – também é dele mas afinal nunca o leu? Mistério? Não, não há espessura para ser um mistério, é apenas uma birra amuada que ontem (não) disfarçava a hesitação e hoje a aflição.
5 So what? Paciência. É o que há.*
Mas enquanto faço passeios pelo parque vou-me interrogando se à excepção dos poucos (mas grandes, imensos e alguns mesmo portentosos) momentos vividos pelo país, Portugal não tem sido afinal, apesar de batalhas, conquistas, catedrais, descobertas longínquas, pouco mais do que “isto”.