Um governo apoiado numa maioria absoluta, em vigência só há pouco mais de ano e meio foi derrubado com estrondo, não na arena política, como seria expectável, mas em consequência de uma investigação judicial abrangendo o chefe de gabinete do primeiro ministro, membros do governo, empresários, o ex “melhor amigo” e incidindo sobre o próprio chefe do executivo. Trata-se de um caso inusitado, que ocorre pela primeira vez em Portugal e que será certamente objecto de múltiplos e interessantes estudos empreendidos por cientistas de diversas áreas, sobretudo quando o decurso do tempo permitir abordagens mais distanciadas e objectivas.

Este governo, já anteriormente fustigado por várias investigações judiciais que conduziram a sucessivas demissões de vários dos seus membros, incapaz de ultrapassar o horizonte rotineiro da gestão conjuntural e de implementar as mudanças estruturais necessárias para conduzir o país para patamares mais elevados de desenvolvimento económico e social não vai, certamente, deixar saudades: na sua actividade dificilmente se encontrará, retrospectivamente, alguma marca relevante que se possa perpetuar no tempo e será recordado sobretudo pela sua autofagia, pelos insólitos casos negativos protagonizados por diversos dos seus ministros e secretários de estado.

Num país como o nosso, com escassos recursos naturais, com debilidades estruturais na economia, com dirigentes políticos peritos na utilização da táctica, mas que negligenciam a estratégia e com elites anémicas, retrógradas, instaladas e conformadas, que preferem defender e consolidar os seus privilégios a inovar e a arriscar, a estabilidade política – que é, em toda a parte, um bem cada vez mais raro e que um governo de maioria absoluta deveria a todo o custo defender – representa um valor inestimável, que importa preservar. A defesa desse precioso valor foi descurada, esse bem foi delapidado e, num momento crucial, nomeadamente no que diz respeito à execução do PRR, esboroou-se mais uma oportunidade para melhorar a competividade da economia portuguesa, fortalecer a sociedade civil e retirar o país da cauda da Europa.

A operação influencer, que esteve na base da queda do governo, irá representar, provavelmente, mais um marco negro da justiça portuguesa. Não sei se estamos perante um caso de judicialização da política ou de politização da justiça – situações que parecem subverter a clássica divisão de poderes no estado liberal – ou se se trata apenas de voluntarismo e de activismo judicial. O processo ainda está a decorrer, a situação poderá ser alterada, mas, para já, o MP sofreu um grande revés. As medidas de coacção decididas pelo juiz ficaram muito aquém do que solicitara o MP e, além disso, os indícios não preenchiam nenhum tipo de corrupção-activa ou passiva. O juiz não validou os crimes de corrupção, nem de prevaricação. Os arguidos foram indiciados por tráfico de influências e de oferta e recebimento indevido de vantagens. Todos saíram em liberdade, após seis dias de detenção e a um deles nem sequer foi imputado qualquer comportamento ilegal. No que diz respeito ao tráfico de influências e à oferta e recebimento de vantagens os “argumentos” da acusação parecem muito frágeis, para não dizer irrisórios: enfatiza-se o pagamento de meia dúzia de refeições, pelos gestores da Start Campus, a ministros e a outros arguidos, no valor total de cerca de dois mil euros!…

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No que diz respeito aos crimes económicos e financeiros, têm sido várias, nos últimos anos, as investigações que não produziram quaisquer resultados. Multiplicam-se os inquéritos nestas áreas que não têm originado acusações e são, também, muito raras as sentenças de prisão. O sistema judicial português é lento, caro e inacessível para os mais desfavorecidos; acumulam-se os processos pendentes nas diversas áreas; escasseiam os recursos humanos, técnicos e materiais; a autonomia, a isenção e a independência do Ministério Público e dos tribunais são, muitas vezes, postas em causa e, recentemente, há mesmo quem aluda à partidarização e à tribalização do Ministério Público. A justiça, pilar fundamental do regime político democráico, será, porventura, a área da governação que necessita de uma intervenção de fundo mais urgente, impulsionada por uma discussão pública alargada e alicerçada num acordo da maioria das forças políticas. Importa, também, investigar melhor e punir a verdadeira corrupção e legislar sobre a actividade de lobbying.

Nas sociedades modernas, democráticas, liberais, são consideradas normais e mesmo indispensáveis as relações que se estabelecem entre a estrutura económica e a estrutura política. Esse relacionamento abrange vários planos – que vão desde a apresentação de projectos de investimento para licenciamento, até à conclusão e inauguração da obra – e ocorre a diversos níveis da administração pública. Nas sociedades em que impera a economia de mercado, com regulação do estado, os empresários, qualquer que seja a dimensão das suas empresas, assumem um papel essencial relativamente ao desenvolvimento económico e social, investindo, inovando e criando riqueza e emprego. As relações acima referidas devem, evidentemente, funcionar no estrito cumprimento da lei e dos regulamentos, nomeadamente no que diz respeito à protecção do ambiente, à concorrência e à igualdade de oportunidades. Não sabemos se haverá, ou não, acusações no âmbito da operação influencer, cujo desfecho se antevê demorado. A avaliar pelo que, até agora, se conhece, nomeadamente através da divulgação das escutas, a investigação parece frágil e pouco convincente. Se o que é referido é considerado comportamento sancionável, então, no presente, assim como também no passado, esse padrão de conduta parece usual, repetindo-se, não só em Portugal, mas também noutros países.

Desde há muito tempo que o coro político e mediático vem exigindo, insistentemente, a demissão do ministro das Infraestruturas. A oposição, principalmente a que e situa mais à direita, à míngua de programa e de ideias mobilizadoras, faz mesmo daquele tipo de exigências a parte mais substancial e também mediática da sua actividade política parlamentar. Na maioria dos casos, no entanto, clama-se pela demissão de membros do governo não propriamente por incompetência relativamente à acção governativa, mas, sobretudo, com base em julgamentos de carácter, que circulam nas redes sociais, ou nos resultados de sondagens de opinião veiculadas pela comunicação social. Os problemas essenciais da governação não se situam, evidentemente, ao nível dos transtornos ciclotímicos do humor dos políticos, nem das suas características tipológicas, apolíneas ou dionísicas.

As opiniões relativas ao carácter, que a comunicação social frequentemente “inventa” e difunde, não contribuem para credibilizar a acção política. Também a devassa da vida privada, a circulação de notícias falsas e a “perseguição”a familiares não constituem aliciantes para encetar uma carreira política. A qualidade do pessoal político tem vindo a diminuir, gradualmente, ao longo do tempo. Considerando os condicionalismos actuais, parece previsível que a procura se retraia cada vez mais e que a degradação se acentue.

Mesmo que outras razões não existissem, o ex-ministro João Galamba já deveria ter-se demitido há mais tempo, para sua protecção pessoal e para garantir a segurança e a privacidade dos seus familiares. Efectivada a exoneração e concluída a cerimónia sacrificial (ver Obs. 23/05/2023) esperemos, agora, que em conformidade com o pensamento mágico, se propague uma sensação de alívio e de libertação. Aludimos aqui à demissão do ex-ministro como metáfora, em sentido figurado, assinalando, concomitantemente à queda do governo, a entrada numa nova era.

A entrada nesta nova era não se me afigura nada auspiciosa. Os resultados das próximas eleições não propiciarão, certamente, maiorias absolutas mono partidárias e os entendimentos, quer à direita, quer à esquerda, parecem difíceis de alcançar. O que 2024 nos reserva será, muito provavelmente, a instabilidade política e a ingovernabilidade do país.

Não, agora não vai ficar tudo bem. Os prognósticos são sempre falíveis. Oxalá o meu não se concretize!