Nestas últimas semanas, ou mesmo meses, temos sido diariamente bombardeados e massacrados pelos noticiários e comentários, na televisão e na rádio, e por notícias e artigos de opinião, nos jornais, relativos aos sucessivos episódios sobre a “série” da TAP. O que sobressai nesta saga, cujo fim ainda está longe de se vislumbrar e que os mass media não se cansam de enfatizar, são, sobretudo, as mentiras do pessoal político, detectadas no decurso das audições da CPI. Nesta comissão os inquiridos são submetidos a uma espécie de “máquina da verdade”, que detecta os pontos fracos, as incoerências e as incongruências dos depoimentos, permitindo a que, no fim da inquirição, se chegue ao almejado veredicto de verdade/mentira.

Do que se tem passado até agora, fica-se com a impressão de que não se pretende verdadeiramente apurar os erros de gestão cometidos, quer na fase de privatização, quer, posteriormente, no período da nacionalização, ou, ainda, as razões conducentes à nova privatização. O que ecoa na comunicação social, o que é objecto dos debates políticos e que se transmite para a opinião pública é apenas o invólucro, a superfície das coisas, os meros detalhes factuais e não o verdadeiro cerne dos problemas.

Nas comissões parlamentares de inquérito, subjacente à pia intenção da busca da verdade, existe um halo de hipocrisia, que o jogo partidário põe a descoberto: os impolutos inquiridores de hoje serão mutatis mutandis os mentirosos de amanhã. A cruzada moralista, “utópica irrealista” de que, na esfera política , no mundo dos políticos, as pessoas são (ou deveriam ser) intrinsecamente puras, não mentem, não lisonjeiam, não conspiram, não escondem segredos e não traem é ilusória e até mesmo perigosa. Nesta ilusão distópica, em que toda a gente está desnudada, sociedade transparente, em que tudo permanece à vista de todos e é imediatamente legível e perceptível, os mass media e a legião de comentadores tornar-se-iam obsoletos e os próprios políticos dispensáveis. Não será, contudo, preferível continuar a viver num mundo humanizado, habitado por seres imperfeitos, compostos por camadas compósitas, umas claras e outras mais sombrias e obscuras que importa respeitar e preservar? Denunciar e censurar quem mente é, sem dúvida importante, mas melhorar e aperfeiçoar o funcionamento da sociedade, nas suas várias dimensões, não pode centrar-se principalmente nessa tarefa.

O episódio mais recambolesco desta série da TAP ocorreu, recentemente, no Ministério das Infraestruturas, desempenhando o respectivo Ministro o papel principal. As notícias então veiculadas aludiam a cenas próprias dos filmes de acção, em que interveio o adjunto do Ministro, que contaram , também, com a participação especial das secretas. No decurso do frenesim mediático que se instalou, foi clamorosamente pedida a cabeça do Ministro e insinuado por alguns comentadores que o Presidente da República só poderia tomar, em relação ao caso, uma atitude muito drástica, demitindo o Primeiro Ministro, ou dissolvendo a Assembleia da República.

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O guião preestabelecido não foi, contudo, seguido à letra. Primeiro, porque, surpreendentemente, o Primeiro Ministro não aceitou a demissão entretanto apresentada pelo Ministro; depois, porque o Presidente da República, no dia seguinte, na sua ansiosamente aguardada declaração ao país, “apenas” zurziu, com inusitada violência verbal, não só o Ministro, cuja demissão exigira publicamente, mas também o Primeiro Ministro, não tomando nenhuma das medidas mais radicais que alguns comentadores vaticinavam e, provavelmente, também desejavam. Sumariado o episódio, passamos, em seguida, a apreciar a perfomance dos principais intervenientes.

Começando pelo adjunto, importa distinguir duas facetas da sua actuação: a relativa aos actos alegadamente violentos praticados no Ministério das Infraestruturas – que consubstanciam um caso de polícia – que só no fim do respectivo inquérito poderá ser devidamente apreciada; a respeitante às “notas”, tomadas em reuniões em que participou, e, mais globalmente, às suas funções junto do Ministro, que também só poderá ser melhor esclarecida após a sua audição na CPI, confrontada com as da chefe de Gabinete e a do Ministro.

Os ministros são, sem dúvida, responsáveis políticos por tudo o que acontece no âmbito dos seus ministérios. Para além da assunção dessa responsabilidade, o Ministro não esteve manifestamente à altura do cargo, na sua descontrolada e explosiva conferência de imprensa. Quanto ao resto, nomeadamente às suas relações com o adjunto, teremos que aguardar, também, pelo veredicto da “máquina da verdade”.

Analisemos, agora, as prestações do Primeiro Ministro e do Presidente da República, os dois protagonistas mais credenciados, que não intervieram directamente nas acções de tipo mais hollywoodesco, mas que desempenharam os papéis principais na prequela e na sequela.

Apreciando as duas prestações, em conjunto, importa referir que, tentando estabelecer o início, uma espécie de “acto fundador”, ele residirá não no facto de o governo governar mal, mas na incontinência verbal do Presidente da República: surge a falar de tudo, todos os dias – às vezes várias vezes ao dia – não só de temas banais e inócuos, mas também da própria acção governativa, e até do poder que lhe assiste de dissolução da Assembleia da República, ameaçando que poderá vir a usá-lo a qualquer momento. Esta embriaguês da palavra, esta verve incontida, perturba a acção do governo e introduz no funcionamento do sistema político um factor de instabilidade e de incerteza.

O facto, incontestável, de o governo governar mal e de se sucederem os “casos e casinhos”, não justifica, por si só, a dissolução da Assembleia da República, numa situação em que existe uma sólida maioria, constituída há apenas quinze meses e não se vislumbra o aparecimento de uma alternativa credível. Após o acto de rebeldia do Primeiro Ministro e de ter sido “desautorizado”, o Presidente da República fez saber que, de futuro, passará a estar ainda mais atento e vigilante em relação à acção governativa!

O Presidente da República mistura e confunde os papéis e o Primeiro Ministro desempenha mal o seu papel. A sua recusa em aceder à pressão do Presidente da República, que se intrometeu publicamente na sua esfera exclusiva de acção, representa, por um lado, um acto de coragem, de afirmação da sua autonomia e de marcação do seu território, e, por outro, a assunção de um risco enorme, ao manter um Ministro muito fragilizado, que, de facto, se comportou de forma reprovável.

Para finalizar, e imitando alguém que, num passado ainda relativamente recente, e fora da academia, se comprazia em fazê-lo, vamos proceder à classificação e atribuir as nossas notas:

  • Adjunto: 9;
  • Ministro: 8;
  • Primeiro Ministro: 8;
  • Presidente da República: 7.

Como se constata, ninguém ficou bem na fotografia, todos tiveram nota negativa!