Confesso que tenho sempre grande simpatia, para não dizer comiseração, por todos os que aceitam cargos de governo na saúde. Depois de lá ter passado vários anos, em diferentes funções, ficou-me esta tendência para procurar perceber e até perdoar as imperfeições dos governantes. São experiências irrepetíveis de enorme aprendizagem, são um processo lento de maturação que, logo que próximo do seu fim, é abruptamente interrompido – ainda bem – pela inevitável e desejável necessidade de sucessão. Por acaso, na área da saúde, quase todas as substituições de titulares a meio de legislatura de pouco ou nada serviram. Desde logo porque os novos governantes ainda têm tudo para aprender (salve-se o nosso heróico – sem ironia – secretário de Estado Adjunto a quem deverá ser devida uma estátua e uma placa de persistência na porta do Nº9 da Avenida João Crisóstomo).
Ora, é neste contexto que tenho apelado para que a assessoria de comunicação da Dra. Marta Temida a ajude, também a nós que a temos de ouvir, a parar de se emaranhar em declarações e atos que nada fazem para reforçar a confiança no seu ministério.
A constituição de um grupo técnico independente para avaliar a fiabilidade dos sistemas de informação resultou de um despacho do SEAS, de 19 de outubro de 2017. Foi a forma que o governo escolheu para averiguar e procurar corrigir os problemas detetados numa auditoria do Tribunal de Contas (TdC). Essa auditoria identificou e procurou temporizar a realidade da espera enquanto fator determinante para o acesso a cuidados de saúde. Fundamental, se nos lembrarmos que o acesso, em termos temporais e geográficos é uma medida da qualidade de um sistema de saúde. Importante, no âmbito do TdC, porque o acesso, além de ser um a medida de qualidade, impacta na eficiência que é outra medida essencial da qualidade. Intervenções tardias tendem a sem menos efetivas e, consequentemente, o uso de recursos iguais, usados mais tarde e com menor probabilidade de sucesso, pode ser desperdício. É por isso que se fala em “tempo útil”.
Convirá ler os objectivos para se compreender o âmbito do GTI a que o senhor Bastonário da Ordem dos Médicos, logo plasmado no Despacho, preside. Digo preside, porque o GTI não terá cessado funções, dada a natureza de acompanhamento de que se reveste, nem foi dissolvido.
O GTI terá produzido um relatório que deu por terminado em agosto de 2018. O ministério entendeu só o divulgar em abril de 2019. Logo, teve todo o tempo necessário para “polir” a linguagem se a julgava ofensiva. Não o fez, ainda bem, porque afirmar que houve limpeza de listas é uma terminologia normalmente aplicada a expurgos de listagens que têm erros, duplicações, enganos de classificação, etc. Nada de mais.
Ora, já fora de tempo e com recurso a um método inepto, a senhora ministra da Saúde veio agora dizer que o relatório do GTI e as declarações proferidas pelo seu presidente geram uma “suspeição intolerável” sobre os sistemas de informação. Se a suspeição não existisse, não teriam constituído o GTI. Não? Depois, parece que a nossa ministra não gosta da palavra “eliminar”. Induz fraudelência. Adoro neologismos. Tudo bem. Como eliminar só se deve usar para coisas como o tabagismo, digo eu, talvez pudéssemos substituir “eliminar” por “limpar”, não o “sebo”, “apagar”, ou ser mais destrutivo e gostar de “triturar” ou, ainda, sendo construtivo, “cozinhar” ou “cerzir”. Até poderíamos criar palavras novas como “encavar”, mandar para a cave do ministério, “atilar”, dar-lhes o destino que o Átila lhes daria, a imaginação não tem fim.
Sejamos francos. Seja qual for a terminologia que se usar os problemas são a falta de fiabilidade de alguns dados – por isso o TdC sugeriu e o governo montou um GTI – e a excessiva espera por cuidados. Este problema, não exclusivo do nosso SNS, é um problema “insuportável”, e de difícil resolução com os meios existentes, para a saúde pública em Portugal. A senhora ministra ganharia mais em guardar a sua indignação para quem não lhe dá os meios do que para com quem, por despacho do ministério da saúde, cumpre o desígnio de expor a verdade. Teria feito melhor se admitisse as dificuldades, falasse da crónica falta de capacidade de intervenção, de pessoal e ferramentas dos SIGLIC, pedisse mais eficiência e, “a cereja no topo”, se dispusesse a exigir mais dinheiro para a saúde. Foi a Dra. Marta Temido quem, muito bem, sugeriu, no exercício das suas funções de presidente da ACSS, a necessidade de um orçamento rectificativo para a saúde, em 2016, porque o orçamento não acautelava o aumento da despesa com pessoal. Foi zurzida pelo Prof. Adalberto Fernandes, mas agora esqueceu-se de quanto lhe doeram as “vergastadas”.
Por favor, volto a sugerir, alguém da assessoria de comunicação ajude a ministra.
Mas não se ficou por aqui. O funeral, termo apropriado, foi ainda mais longe. Ao que parece, cumprindo o seu desígnio biológico e a história natural da vida e da doença, houve pessoas que faleceram enquanto aguardavam por cuidados. Inevitável acontecimento. O que não esconderá que possam ter existido mortes evitáveis se a intervenção tivesse sido feita em no “tempo desejável”. É isso que tem de ser investigado para que possa ser evitado, nomeadamente pelo aperfeiçoamento dos modelos de identificação de casos prioritários. Matéria muito difícil mas que pode e deve ser abordada de forma científica. Ora, em vez de dizer isso, a nossa estimada governante veio logo explicar que 70% — ficamos com dúvidas quanto aos restantes 30% e até poderia ter sido só um para a coisa ser grave – morreram dentro de tempos de resposta garantidos. Não consigo ser brando. A estultícia é do tamanho do Evereste. Se morreram dentro de “tempos garantidos” a conclusão é que a garantia foi pouca para os que morreram. Os tempos garantidos são um subterfúgio administrativo, sem base científica que os sustente, que apenas se destinam a determinar o momento após o qual os utentes terão direito a exigir ser tratados fora do SNS. Cá está, com os “malandros” dos privados que ajudam o Estado a superar as suas ineficiências. Os tempos garantidos não são uma medida de eficácia garantida na intervenção, nem uma garantia de segurança clínica. Não tenho dúvida que a nossa ministra sabia disto, mas esqueceu-se e ninguém lhe soprou ao ouvido, “não diga isso que é disparate”. Mas não nos admiremos se, a fazer fé no que se lê em jornais, uma fonte do ministério disse ao jornal Público que os doentes que “morreram estavam com tempos de espera clinicamente aceitáveis”, tão aceitáveis que até morreram aceitavelmente enquanto esperavam…
Para já, as grandes conclusões são que ministra não pode ser deixada à solta e precisa de quem lhe guie os passos e palavras. Depois, é urgente fazer uma acção de formação na Saúde sobre o que são os “tempos úteis”, “clinicamente aceitáveis”, “garantidos” e, muito mais importante, “satisfatórios”. Mais uma nota, convidem os do INFARMED que também precisam da sabatina. E, junto dos utentes, expliquem que há uma diferença entre o “desejável” e o “possível”. Porque, a quem espera pela protecção da sua saúde, o que interessa é o que for “tempo exigível”.
Para compor o ramalhete, as flores que faltavam ao funeral, lá surgiu a notícia da sindicância à Ordem dos Enfermeiros. Uma delícia. Nem me perco em considerações sobre a evidente falta de competência da IGAS para esta intervenção sobre uma organização profissional. A consideração Pascal é que se Cristo não tivesse sido crucificado, decisão absurda e atentatória da liberdade religiosa e do direito à expressão política e social, não haveria Páscoa. Sinceramente, não me parece que a saúde precisasse de mais mártires, para lá dos doentes que morrem dentro dos “tempos garantidos”.
Ex-ministro da Saúde